terça-feira, 14 de outubro de 2025

EUA e Argentina: dois pesos e duas medidas, por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo

O estabelecimento de um canal direto Lula-Milei poderia ser um indicador importante da prioridade da América do Sul para a política externa brasileira

Profundas diferenças ideológicas separaram Lula de Trump desde a campanha eleitoral e a posse do presidente norte-americano. Ataques pessoais agravaram ainda mais a atitude de estranhamento e de falta de canais de comunicação do Palácio do Planalto com a Casa Branca.

Ignorando as ofensas e as divergências ideológicas, o presidente Trump, colocando os interesses econômicos e comerciais dos EUA em primeiro lugar, tomou a iniciativa de ligar para o presidente Lula. Esse gesto pragmático, colocando as medidas políticas e ideológicas contra o Brasil em segundo plano, abriu a possibilidade da retomada das negociações comerciais visando superar os impactos negativos para os dois países do tarifaço de julho passado. Por seu lado, o presidente Lula, deixando de lado as sanções políticas contra membros de seu governo e a diferença ideológica, colocou um ponto final na ausência de comunicação com o dignitário norte-americano.

Situação muito semelhante ocorre entre o Palácio do Planalto e a Casa Rosada em Buenos Aires. Pelas mesmas diferenças ideológicas e por ataques pessoais duros entre o presidente Lula e o presidente Javier Milei, permanece a ausência de comunicação direta entre os líderes dos dois maiores países sulamericanos. Essa situação não é do interesse nem da Argentina nem do Brasil, num momento de grandes transformações econômicas e políticas no cenário global.

Se o presidente brasileiro decidiu ignorar as diferenças e os ataques ao Brasil e a seu governo de parte do lado norte-americano, não haveria motivo para continuar a ausência de um contato direto com o presidente de uma nação vizinha, parceira no Mercosul e que compartilha de história e geografia comum, e com grandes possibilidades de ampliação do relacionamento econômico, político e comercial.

Javier Milei, por ocasião de sua posse, enviou uma carta a Lula, entregue em mãos ao ministro Mauro Vieira pela então chanceler argentina, Diana Mondino. Na missiva, além do convite para participar da cerimônia, Milei assinala que Brasil e Argentina têm muitos desafios na economia, na área social e cultural e que, baseados nos princípios da liberdade, posicionarão os dois países como países competitivos em que os cidadãos possam desenvolver ao máximo suas capacidades e escolher o futuro que desejam. Acrescentou que as duas nações estão estreitamente ligadas pela geografia e pela histó

O estabelecimento de um canal direto Lula-Milei poderia ser um indicador importante da prioridade da América do Sul para a política externa brasileira

ria e que, a partir daí, deveriam compartilhar áreas de complementariedade na integração física, comércio e presença internacional que permitam que tudo isso seja traduzido em crescimento e prosperidade para argentinos e brasileiros. Conclui dizendo a Lula que deseja que o tempo em comum como presidentes seja uma etapa de trabalho frutífero e de construção de laços que consolidem o papel que a Argentina e o Brasil podem e devem cumprir no concerto das nações. Além de não ter comparecido à posse de Milei, Lula deixou a carta sem resposta, apesar do aceno de Milei ao trabalho conjunto em defesa dos interesses dos dois países.

A exemplo do que fez com Trump, deixando à parte as diferenças ideológicas e os ataques pessoais, levando em conta os interesses nacionais mais amplos, chegou o momento de tratar o relacionamento bilateral de forma pragmática. Os desafios que a geopolítica coloca para o Brasil e a Argentina, que dependem hoje basicamente de recursos provenientes das exportações de produtos agrícolas e alimentos para crescer e aumentar a renda, aconselham uma coordenação mais estreita entre os dois governos. A próxima assinatura do acordo Mercosul-União Europeia vai demandar uma coordenação mais estreita entre os dois países nas três frentes – comercial, política e de cooperação – previstas nos acordos que poderão ser assinados em dezembro por ocasião da reunião presidencial do Mercosul no Brasil.

Chegou a hora de, no melhor interesse do Brasil, Lula, assim como Trump, fazer um gesto em relação ao presidente argentino. No convite, que será feito para a participação na reunião presidencial do Mercosul, o gesto de aproximação feito por Milei há quase dois anos poderia ser reciprocado. Nesse encontro, poderia ser quebrado o gelo no relacionamento entre os dois presidentes e superado o distanciamento existente até agora.

A ausência de contato direto entre os presidentes Lula e Milei não impediu que as relações entre Brasil e Argentina continuassem e prosperassem. As exportações brasileiras seguem crescendo no mercado argentino. Também continuam em pauta os entendimentos na área de energia. A retomada de contatos de alto nível poderá abrir a possibilidade de entendimentos nas áreas de investimentos e cooperação. E a abertura de conversas em áreas de interesse mútuo, como a criação de cadeias produtivas regionais com a colaboração entre empresas brasileiras e argentinas. Isso além de colaboração no desenvolvimento de projetos de integração regional conjuntos, como as questões de segurança da tríplice fronteira, de energia, do projeto bioceânico e da Hidrovia Paraná-Paraguai, de grande importância para as empresas brasileiras.

O estabelecimento de um canal direto Lula-Milei poderia ser um indicador importante da prioridade da América do Sul para a política externa brasileira. •

 

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