DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
No início de 2006 havia no País uma visão quase consensual, da qual compartilhava a própria equipe econômica do governo. Tendo em conta a dura realidade do quadro fiscal, o governo não poderia arcar com o esforço de investimento em infraestrutura que o País tinha pela frente. E seria fundamental, portanto, assegurar práticas regulatórias bem concebidas que pudessem atrair capitais privados para a expansão da infraestrutura. Pouco mais de quatro anos se passaram. O quadro fiscal continua o mesmo. Mas o governo agora parece ter recursos para bancar quase tudo. Não há projeto de investimento, por mais dispendioso que seja, que não possa ser financiado com dinheiro público. Qual foi a mágica?
Tudo começou quando Antonio Palocci foi substituído por Guido Mantega no Ministério da Fazenda. Numa entrevista ao Financial Times, o recém-empossado ministro deixou entrever o que estaria por vir, com uma explicação inesquecível que, por encerrar óbvia contradição em termos, passou a ser conhecida como o enigma de Mantega: como o governo não contava com recursos para investir, a solução era recorrer ao investimento privado financiado com recursos do governo.
Desse entalo lógico, Mantega logo se livraria, ao ser convencido por Luciano Coutinho, presidente do BNDES, de que o que estava errado era a premissa de que o governo não tinha recursos. Nada impedia que o Tesouro emitisse mais dívida pública. E emprestasse os recursos assim obtidos ao BNDES, a juros subsidiados. E, se Mantega quisesse evitar que esse aumento de endividamento aparecesse na dívida líquida do governo, poderia recorrer ao artifício contábil de lançar os empréstimos ao BNDES como ativo do Tesouro ao calcular a dívida líquida. Foi essa a mágica que permitiu que o governo possa hoje se dar ao luxo de bancar qualquer tipo de investimento. Tudo, claro, à custa de preocupante aumento do endividamento bruto da União e de vultosa e indefensável conta de subsídios em aberto.
O que se teme é que esse esquema, já de proporções bastante grandes, possa ser apenas o plano piloto de uma operação em escala muito maior, a ter lugar no próximo mandato presidencial. Sem a intermediação de Mantega, direto ao caixa, sob o comando direto do próprio Luciano Coutinho.
A súbita fartura de recursos estatais vem distorcendo a formatação dos novos projetos de infraestrutura. Basta ver o que acabou ocorrendo com a composição do consórcio ganhador de Belo Monte. A Eletrobrás e suas subsidiárias responderão por 49,98% da sociedade formada. Fundos de pensão de empresas estatais - que não são públicos, mas que o governo trata como se fossem - vão deter 27,5%. A participação de investidores efetivamente privados, incluindo construtoras, ficou restrita a pouco mais de 22,5%. O BNDES deve financiar cerca de 80% da obra, diretamente ou através dos sócios. Tudo com juros pesadamente subsidiados e a prazos longuíssimos. Mas, ainda assim, dadas as deformações de Belo Monte, houve investidores privados que concluíram que os riscos do projeto eram excessivos.
É preciso entender que, não obstante todo o viés estatal, o governo não pode abrir mão da participação dos investidores privados. Porque precisa manter a fachada de "consórcio privado", sem a qual a usina teria de ser construída em estrita observância da Lei de Licitações (n.º 8.666), o que o próprio presidente da Eletrobrás declarou ser missão impossível. Para o governo, portanto, tornou-se fundamental evitar que o alto risco envolvido nos seus projetos de infraestrutura impeça a participação necessária de investidores privados.
É isso que explica a última etapa da escalada de contrassensos. Depois de tentar assegurar na marra a modicidade tarifária, com o festival de subsídios de Belo Monte, o governo constata agora que precisa partir para a "modicidade securitária". Quer criar uma seguradora estatal para bancar a preços camaradas riscos envolvidos em obras de infraestrutura, transferindo-os, em boa parte, ao contribuinte. Mais do mesmo.
No início de 2006 havia no País uma visão quase consensual, da qual compartilhava a própria equipe econômica do governo. Tendo em conta a dura realidade do quadro fiscal, o governo não poderia arcar com o esforço de investimento em infraestrutura que o País tinha pela frente. E seria fundamental, portanto, assegurar práticas regulatórias bem concebidas que pudessem atrair capitais privados para a expansão da infraestrutura. Pouco mais de quatro anos se passaram. O quadro fiscal continua o mesmo. Mas o governo agora parece ter recursos para bancar quase tudo. Não há projeto de investimento, por mais dispendioso que seja, que não possa ser financiado com dinheiro público. Qual foi a mágica?
Tudo começou quando Antonio Palocci foi substituído por Guido Mantega no Ministério da Fazenda. Numa entrevista ao Financial Times, o recém-empossado ministro deixou entrever o que estaria por vir, com uma explicação inesquecível que, por encerrar óbvia contradição em termos, passou a ser conhecida como o enigma de Mantega: como o governo não contava com recursos para investir, a solução era recorrer ao investimento privado financiado com recursos do governo.
Desse entalo lógico, Mantega logo se livraria, ao ser convencido por Luciano Coutinho, presidente do BNDES, de que o que estava errado era a premissa de que o governo não tinha recursos. Nada impedia que o Tesouro emitisse mais dívida pública. E emprestasse os recursos assim obtidos ao BNDES, a juros subsidiados. E, se Mantega quisesse evitar que esse aumento de endividamento aparecesse na dívida líquida do governo, poderia recorrer ao artifício contábil de lançar os empréstimos ao BNDES como ativo do Tesouro ao calcular a dívida líquida. Foi essa a mágica que permitiu que o governo possa hoje se dar ao luxo de bancar qualquer tipo de investimento. Tudo, claro, à custa de preocupante aumento do endividamento bruto da União e de vultosa e indefensável conta de subsídios em aberto.
O que se teme é que esse esquema, já de proporções bastante grandes, possa ser apenas o plano piloto de uma operação em escala muito maior, a ter lugar no próximo mandato presidencial. Sem a intermediação de Mantega, direto ao caixa, sob o comando direto do próprio Luciano Coutinho.
A súbita fartura de recursos estatais vem distorcendo a formatação dos novos projetos de infraestrutura. Basta ver o que acabou ocorrendo com a composição do consórcio ganhador de Belo Monte. A Eletrobrás e suas subsidiárias responderão por 49,98% da sociedade formada. Fundos de pensão de empresas estatais - que não são públicos, mas que o governo trata como se fossem - vão deter 27,5%. A participação de investidores efetivamente privados, incluindo construtoras, ficou restrita a pouco mais de 22,5%. O BNDES deve financiar cerca de 80% da obra, diretamente ou através dos sócios. Tudo com juros pesadamente subsidiados e a prazos longuíssimos. Mas, ainda assim, dadas as deformações de Belo Monte, houve investidores privados que concluíram que os riscos do projeto eram excessivos.
É preciso entender que, não obstante todo o viés estatal, o governo não pode abrir mão da participação dos investidores privados. Porque precisa manter a fachada de "consórcio privado", sem a qual a usina teria de ser construída em estrita observância da Lei de Licitações (n.º 8.666), o que o próprio presidente da Eletrobrás declarou ser missão impossível. Para o governo, portanto, tornou-se fundamental evitar que o alto risco envolvido nos seus projetos de infraestrutura impeça a participação necessária de investidores privados.
É isso que explica a última etapa da escalada de contrassensos. Depois de tentar assegurar na marra a modicidade tarifária, com o festival de subsídios de Belo Monte, o governo constata agora que precisa partir para a "modicidade securitária". Quer criar uma seguradora estatal para bancar a preços camaradas riscos envolvidos em obras de infraestrutura, transferindo-os, em boa parte, ao contribuinte. Mais do mesmo.
Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-RIO
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