Fernando Henrique Cardoso chega aos 80 anos em grande forma e na plenitude das qualidades que dele fizeram um grande intelectual e um grande homem público. É o nosso elder statesman e a sua palavra tem prioridade na agenda de discussão nacional. Tem prioridade porque é dotada de autoridade, que se caracteriza por ser menos que um comando, mas mais do que um conselho, na definição de Mommsen. Essa autoridade é fruto do seu percurso e do seu legado, que aqui destaco celebrando o seu aniversário e, ao mesmo tempo, contrapondo-me à damnatio memoriae com a qual o presidente Lula, o PT e os seus simpatizantes, inclusive no mundo acadêmico, buscaram infligir à sua trajetória.
A damnatio memoriae é um instituto do Direito Romano por meio do qual um sucessor condenava a memória do seu antecessor, buscando apagar a sua imagem e eliminar o seu nome das inscrições, considerando-o um inimigo ou uma vergonha para o Estado romano. No Brasil, esse é o objetivo da retórica da "herança maldita", tal como persistentemente aplicada à qualificação da sua gestão presidencial por seu sucessor e acólitos. Ressalvo que dessa postura se afastou a presidente Dilma Rousseff, ao saudar com civilidade republicana os 80 anos de FHC e ao identificar os seus méritos.
Fernando Henrique é um raro caso, no Brasil e no mundo, de um grande intelectual que foi bem-sucedido na política, alcançando a Presidência da República no primeiro turno, por voto majoritário, em duas sucessivas eleições. Usualmente os intelectuais, na medida em que se interessam pela política, ou se dedicam à crítica do poder ou a assessorar o poder. FHC, além de ter desempenhado esses dois papéis, exerceu o poder no vértice do sistema político brasileiro. Logrou alcançar e exercer o poder em função de certas características de personalidade que merecem o elogio, e não a condenação de uma ressentida damnatio memoriae.
FHC foi afirmando a sua liderança desde os tempos da universidade, o que lhe valeu o reconhecimento dos seus pares. São componentes do modo de ser da sua liderança a agilidade e a rapidez da inteligência, que os gregos qualificam de anquinoia, e o dom de gentes, da prazerosa civilidade do seu trato com as pessoas..
A política requer coragem, que é uma "virtude forte" necessária para o ofício de governar e vai além das virtudes requeridas para lidar com as necessidades da vida e as exigências da profissão. É o sentimento de suas próprias forças, como a define Montesquieu. É saber manter a dignidade sob pressão, nas palavras de Hemingway, no confronto com o perigo e as dificuldades. Coragem, nos precisos termos das definições acima mencionadas, nunca faltou a FHC, como posso testemunhar ao tê-lo visto enfrentar seja a aposentadoria compulsória na USP por obra do arbítrio do regime militar e o bafo da repressão nos momentos iniciais do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), seja, em outro plano, no exercício da Presidência, a desestabilizadora crise do câmbio de 1999, que pôs em risco o Plano Real. Teve, para dar outro exemplo, a coragem de assumir o Ministério da Fazenda, no governo Itamar Franco, para enfrentar o imenso desafio de debelar anos de uma inflação desenfreada e corrosiva. A coragem também passa pela firmeza de lidar com temas controvertidos e se contrapor ao seu grupo político e à tendência majoritária da opinião pública. É a nota do seu empenho atual na discussão do problema das drogas, que mostra que os anos não enfraqueceram a sua vocação de combate.
O juízo político é a capacidade de perceber as características que singularizam um contexto. Beneficia-se da visão geral que o conhecimento oferece, mas requer a competência para identificar, numa dada realidade, as particularidades do que pode ou não resultar. FHC, na sua trajetória, foi capaz de olhar o distante e observar o perto, nas palavras de Goethe. Desse modo, como intelectual apto a se orientar na História, sempre teve visão global para entender o conjunto das coisas no Brasil e no mundo e, por obra da qualidade do seu juízo político, a sensibilidade para captar o espaço do potencial das conjunturas com que se confrontou. Pôde, assim, exercer, para falar com Albert Hirschman, a sua íntegra "paixão pelo possível".
Assegurou, na sua Presidência, republicanamente, a governabilidade democrática de um país complexo como o Brasil, por meio de uma liderança aparelhada por um superior juízo político que soube dosar harmonização com inovação e transformação. Logrou, desse modo, orientar o País a partir do Estado e mudar a sociedade brasileira, pois guiado pelo seu sentido de direção construiu um novo patamar de possibilidades para o nosso país.
FHC transformou a sociedade brasileira com o Plano Real, que, com a estabilidade da moeda, assegurou a previsibilidade social das expectativas e promoveu a redistribuição de renda. Impôs racionalidade administrativa com a legislação da responsabilidade fiscal e as privatizações. Garantiu a solidez do sistema bancário com o Proer. Inaugurou o novo alcance das redes de proteção social com o Bolsa-Escola. Empenhou-se na institucionalização da democracia, no fortalecimento da cidadania e na valorização dos direitos humanos. Deu destaque à agenda ambiental. Elevou, com as suas realizações e sua presença pessoal, o alcance do papel do Brasil no mundo. Em síntese, o seu legado é o de um grande homem público que promoveu a ampliação do poder de controle da sociedade brasileira sobre o seu destino, de que se vem beneficiando, de maneira duradoura, o nosso país.
Celebrar o seu aniversário é uma oportunidade de celebrar a sua obra e a sua pessoa e, no meu caso, de afirmar que é um privilégio fruir a sua convivência e, assim, saudar, com amizade e admiração, os seus jovens, sábios e democraticamente bem-humorados 80 anos.
Professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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