A imagem de retirantes famintos ficou no passado. programas de trasnferência de renda abrandam a vergonha da fome durante a estiagem. Hoje, são atividades produtivas que estão sendo dizimadas. Só na pecuária, prejuízo é de R$ 1,5 bilhão
Um novo flagelo
Estiagem que castiga Pernambuco e o Nordeste não é mais aquela que produz retirantes famintos. Mas segue perversa ao dizimar animais e plantações
Adriana Guarda
BOM CONSELHO - Na seca de 1932, o jovem Miguel Arraes decidiu fazer prontidão na frente de sua casa, no município cearense do Crato. Com uma jarra do lado e bolachas à mão, o ex-governador de Pernambuco distribuía água e comida com retirantes famintos. Hoje, a calamidade tem outra face. A imagem de crianças esquálidas de Vidas Secas não representa a "nova estiagem". Programas de transferência de renda abrandaram a vergonha da fome. O flagelo é econômico. No Semiárido pernambucano, atividades produtivas foram quase dizimadas. Só na pecuária, o prejuízo é de R$ 1,5 bilhão. Há 2 anos não cai chuva suficiente para plantar feijão e milho. O verão prolongado comprometeu até a produção irrigada. Entre os meteorologistas é consenso que as previsões para os próximos três meses não são otimistas.
"Se não chover dentro de mais um mês vou abrir a porteira do curral e deixar o gado ir embora", confessa, desolado, o pequeno criador Sebastião Curvelo, de Bom Conselho (Agreste). Bastim, como é conhecido no campo, admite abandonar a atividade de uma vida inteira, por falta de condições para alimentar os animais. Desde que a estiagem se prolongou, o produtor divide o dinheiro da aposentadoria rural com os bichos. "Fico com uma parte para a feira da família e o restante gasto com eles, mas não tô aguentando", diz.
Anêmicas e desnutridas, as vacas quase não produzem mais leite e deixam de gerar renda para virar um fardo. "Hoje a bóia delas é folha de bananeira. Compro uma carrada por R$ 200 e ainda tenho que pagar mais R$ 200 pelo frete", calcula Bastim, que chegou a ter 60 animais, mas hoje só restam 13. Uma parte vendeu barato e outros morreram de inanição.
A terra esturricada e sem pasto obriga os criadores a uma rotina de peregrinação pelo Semiárido em busca de água e comida para os animais. Referência de uma pequena produtora que conseguiu estruturar seu sítio, Maria Tito Luz, de 51 anos, vendeu uma casa e pediu empréstimo para manter o curral vivo, no distrito de Barra do Brejo, em Bom Conselho. Os barreiros secaram e a silagem armazenada para dar ao gado na estiagem só durou seis meses. "A última trovoada que deu por aqui foi em junho de 2012, mas foi fraca. Nasci e me criei por essas bandas e nunca vi uma seca dessas", diz.
Os carros-pipa do Exército, do Estado e da prefeitura nunca deram o ar da graça em Barra do Brejo. Maria é obrigada a desembolsar R$ 120 por semana num pipeiro para encher o barreiro onde os bichos matam a sede. O sol a pino e o céu sem nuvem, de um azul estridente, fazem a água evaporar rápido. Junto com os irmãos que moram na vizinhança, a criadora cotiza a compra de palma, vai buscar cana-de-açúcar doada pelo governo e disputa espaço nos mananciais onde resta uma nesga de água.
"Se a praga (da cochonilha do carmim) não tivesse acabado com a palma, nossa situação seria diferente. Ela era a salvação do gado. Hoje, precisamos buscar a planta em Alagoas. Pagamos R$ 600 por um caminhão pequeno e quem vende ainda nos obriga a cortar o caule e carregar o caminhão", conta. A cochinilha dizimou 90% da plantação de palma de Pernambuco.
Com a altivez da mulher do campo e um empréstimo que conseguiu tirar (a muito custo) no Banco do Nordeste, Maria vai conseguindo afastar, enquanto pode, o fantasma da morte de seu rebanho. "Ainda cheguei a perder cinco reses", contabiliza. Dos 30 animais que ficaram, vendeu dez (cada um por R$ 500) para dar de comer e beber ao restante. Toda a persistência é para manter a criação viva, porque a produção de leite e a geração de renda definhou junto com as vacas. "Faísca era minha melhor matriz. Dava até 12 litros de leite por dia. Hoje (mal alimentada) não faz nem três litros", compara.
Quem não se empenhou ou não teve a mesma sorte que Maria viu a seca levar os bichos. Os cemitérios de carcaças de animais se espalham por todo o Agreste e Sertão do Estado. Nos 1.233 quilômetros percorridos pela reportagem do JC em seis municípios, na semana passada, a cena se repetiu invariavelmente. É o retrato de uma terra arrasada, que perdeu metade do seu rebanho bovino. "Num intervalo de 10 anos, o plantel pernambucano disparou de 1 milhão para 2,5 milhões de cabeças de gado", compara o secretário estadual de Agricultura, Ranilson Ramos. Em 2 anos de seca, a tradicional bacia leiteira do Estado retrocedeu ao que era há uma década.
O colapso na oferta deixou de balde na mão um parque industrial inteiro e alçou o preço do leite de Pernambuco ao mais caro do País. Gigantes como a Brasil Foods (dona da Sadia e Perdigão), Betânia e Lácteos Brasil (LBR) estão com suas fábricas ociosas e já dispensaram pessoal. No mercado, a informação é que a Perdigão/Batavo, em Bom Conselho, já teria demitido 93 funcionários e tem outra lista de 100 cortes prevista para este mês. Procurada, a empresa não respondeu ao pedido de entrevista. "Antes da seca processava 150 mil litros na fábrica, hoje só consigo captar 50 mil litros", lamenta o dono da Bom Leite, Stênio Galvão. O laticínio de São Bento do Una (Agreste) está comprando leite em pó para fabricar suas bebidas fermentadas.
"O volume diário de leite no Estado não roda sequer três indústrias, que dirá o mercado inteiro, que inclui laticínios menores e queijarias", observa o presidente do Sindicato das Indústrias de Laticínios de Pernambuco, Albérico Bezerra. Pesquisa da Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária (Sara) do Estado, em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) em 600 propriedades do semiárido, mostra que a produção de leite despencou 72% e que 17% dos criadores venderam (ou perderam) seus animais e saíram da atividade. O mais dramático é que 80% da atividade estava na mão de pequenos produtores, que levaram décadas para construir um ativo agora arruinado.
Fonte: Jornal do Commercio (PE)
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