• É possível fruir a Copa esteticamente e criticá-la politicamente
Pedro Duarte* - O Globo
Nelson Rodrigues, o maior escritor sobre futebol que já tivemos, espantava-se que, no Brasil, os homens largassem tudo — trabalho, namorada — para ver um jogo. O fascínio explicava-se, para ele, por buscarmos em clássicos e peladas uma só e a mesma coisa: poesia. Embora soe exagerada, muito ao gosto do autor, a frase é certeira. É claro que há a torcida por nosso time ou seleção. Queremos que vençam. E, contudo, não nos satisfazemos com a vitória simples, ainda mais no caso da seleção. Queremos jogar bonito, procuramos o chamado futebol-arte. Valorizamos o escrete de 1982 do Brasil, mesmo tendo sido derrotado. Por quê? Pois ali havia poesia.
Nem toda poesia precisa ser escrita, ou em versos. Existe uma poesia solta no mundo, correndo na natureza, pregnante na vida mesma. Basta ter olhos para ver, sem preconceitos. O futebol é um exemplo radical a esse respeito. Isso é tão relevante que, mesmo contrariando os interesses que temos na vitória do Brasil, por exemplo, vemos poesia na genialidade de Maradona, ou na elegância de Zidane, nossos dois carrascos maiores recentemente. Tiraram a seleção de três Copas: 1990, 1998 e 2006. Podemos odiá-los, mas os admiramos ao mesmo tempo. Essa capacidade de experimentar o que há de belo no mundo, a despeito das desvantagens práticas que nos traz, é conhecida na história da estética: Kant, no fim do século XVIII, a chamou de desinteresse.
Há algo no futebol que se destaca da simples vitória. Os gols que Pelé não fez e as Copas que Zico não ganhou permanecem inesquecíveis momentos de bela poesia em nossa memória. O interesse da vitória não chapa o resto da vida. O belo nos desarma dos nossos interesses, o que nada tem a ver com indiferença. Kant dizia que aí ocorria a “promoção das forças vitais". Os instantes nos quais tal poesia ocorre são instantes imensos, incomensuráveis. Duram para sempre, ainda que efêmeros. São no tempo, mas não cabem só nas datas fixas da cronologia. Têm a durabilidade da arte.
Tragédia e felicidade
Com a Copa no Brasil, estamos perto de alguns dos maiores artistas da bola. É muito bom isso! Poucos anos atrás, um refrigerante brasileiro fez uma propaganda na TV em que Maradona sonhava que estava jogando pela seleção brasileira, como se este fosse seu desejo recôndito. É evidente que uma boa leitura da peça publicitária logo percebe que o importante é que ela foi produzida e veiculada no Brasil. Maradona, na verdade, atuou ali a vontade dos brasileiros de que ele fosse nosso. Identificamos nele a poesia que procuramos. Ora, se a elite do futebol estrangeiro jamais vestirá a camisa canarinho, o mais perto que chegaremos disso é a Copa jogada aqui.
O problema, nesse contexto, é que está difícil acompanhar com desinteresse a Copa, por tudo que a cerca. Gastos excessivos, estádios inexplicáveis, corrupção e os favorecidos de sempre convivem com a precariedade social dos hospitais e escolas de um país aquém do que o povo brasileiro precisa. Mas esse mesmo povo ama futebol e gostaria de festejá-lo, de ser tomado por aquela embriaguez desmesurada e dionisíaca da qual falava Nietzsche. Na festa do canto e da dança, o homem torna-se membro de uma comunidade superior; “desaprendeu a andar e a falar, está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares", afirmou o filósofo. Torcer é achar-se em unidade com outras pessoas e com o time: abraçamos estranhos na arquibancada e a torcida é, conforme o ditado, o 12º jogador. O indivíduo dilui-se na multidão e junto ao time.
O entusiasmo desinteressado — no qual a pessoa esquece de si e apaga o eu por alguns momentos — contraria o racionalismo crítico de que carecemos diante da forma político-econômica pela qual a Copa foi feita mas é, ao mesmo tempo, coerente com o prazer festivo do futebol. Não se trata, entretanto, de uma encruzilhada. Podemos fruir a Copa esteticamente e criticá-la politicamente. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Nada se transforma sem crítica. Nada vale a pena sem prazer.
Lembram do jogo contra o Uruguai no final das eliminatórias para a Copa de 1994? Maracanã lotado com Romário escrevendo versos em dribles, rimas em gols? Se a seleção jogar com uma poesia assim, conquistará a todos. Ninguém resistirá. Pois existe um falso dilema, até hoje, entre jogar mais bonito e perder, como em 1982, ou jogar mais feio e ganhar, como em 1994. Ele é falso porque já perdemos jogando feio, em 1990, e ganhamos jogando bonito, em 1970. Não é absoluta, portanto, a dualidade entre dar resultado ou espetáculo, entre eficácia e arte.
Pois jamais sabemos se venceremos. É isto que faz o jogo estar em jogo. Mas decidimos como jogar, se burocraticamente ou dando espaço para poesia, com “a dor e a delícia de ser o que é". O futebol, aí, é símile ético da vida: tragédia e crueldade, felicidade e alegria. Jogar é arriscar. Sem isso, não tem graça. O futebol tem. Pois, ao instaurar uma distância entre os fundamentos (posse de bola, passe, desarme, chute) e o ponto que conta (gol), fica imprevisível. Nenhum esporte separa assim meio de fim. Nenhum tem tanta poesia. No futebol, perguntamos: quem jogou melhor? Como se o placar não bastasse para dizê-lo. E aí está a beleza. Times burocráticos podem vencer, mas viram estatísticas. Times poéticos podem perder, mas duram como um sonho.
Esse sonho torna-se a medida do que queremos ser. No Brasil, o futebol não é a confirmação da identidade narcísica que temos a certeza de possuir. Pelo contrário. Duvidamos disso. Buscamos no futebol uma cifra do que podemos ser, e não do que somos. Gostamos de achar no estilo da seleção uma singularidade brasileira, diferente do padrão europeu, pois nela estaria uma ideia de nação para além da pálida imitação civilizatória de um modelo já conhecido. Isso é criação; como a utopia, a um só tempo risonha e efêmera, de Garrincha. Ela nos faz desejar estar à sua altura. O mundo, de lá para cá, mudou. O futebol também. Mas será que, a seu modo, a seleção de Neymar e cia. pode nos dar uma poesia para sonhar? Bem que estamos precisando.
*Pedro Duarte é professor de Filosofia da PUC-Rio e autor do livro “Estio do tempo: Romantismo e estética moderna”
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