terça-feira, 5 de agosto de 2014

Arnaldo Jabor: Revolução das periguetes

• No Brasil das celebridades, o feminismo foi um mal-entendido, muitas vezes rima com galinhagem ou até com uma forma velada de prostituição

- O Globo

Chega de política. Vou falar de sexo. Antes, havia a “sexpol”, bandeira da política sexual dos anos 60. Hoje, temos no máximo a “polsex”, ou seja, como as ideologias dançaram, só a sexualidade explica os rumos do mundo e, claro, do Brasil, nosso grande motel das ilusões perdidas. Sexo: nossos sentimentos estão canalizados para um mesmo buraco. Ando pela rua e todos os outdoors são de mulher nua — outro dia, quase bati o carro na Avenida Paulista, por causa da lourinha nua da “Playboy”. Todas as capas de revista são uma grande feira de mulheres gostosas e homens raspadinhos. Tudo parece liberdade, mas a coisa é outra. Nos anos 60 (oh... os recentes anos remotos) o sexo era uma novidade política, depois dos caretíssimos anos 50, quando o sexo tinha algo de crime, algo de secreto que perfumava nossas vidas com o estímulo da culpa. Não havia motéis, nem as pílulas que, depois, fizeram mais pela liberdade sexual que mil livros feministas. Nunca vi tanta publicidade movida a sexo. A propaganda nos promete uma suruba transcendental. Em nenhum lugar do mundo vemos o apelo sexual nas ruas, nas roupas de meninas — nosso feminismo resultou na revolução das “periguetes”. No Brasil das celebridades, o feminismo foi um mal-entendido. Muitas vezes rima com galinhagem ou até com uma forma velada de prostituição. É uma mistura de liberdade com submissão a uma salada de frutas: mulher melancia, mulher melão, mulher jaca.

Hoje em dia, as mulheres foram expulsas de seus ninhos de procriação, de sua sexualidade expectante, e são obrigadas ao sexo ativo e masculino. A “supergostosa” é homem; ou melhor, é produto do desejo masculino. O homem é pornográfico; a mulher é amorosa. A pornografia é só para homens.

Já expuseram o corpo todo, seios, vagina, mucosas, ânus. O que falta? Os órgãos internos? Seu ideal é serem desejadas como bons produtos. Felicidade é serem consumidas. Felizes como coisas: Uma salsicha é feliz? Uma bela lata de caviar? Mas como amar um eletrodoméstico? A grande moda do momento são mulheres penduradas em acrobáticas posições ginecológicas para raspar os pelos pubianos nos salões de beleza. Ficam balançando em paus de arara e, depois, saem felizes com um jardinzinho estreito e não mais a floresta peluda onde mora a temível “vagina dentata”. Parecem uns bigodinhos verticais que me fazem pensar em Hitler.

Que querem essas mulheres? Querem acabar com nossos lares? Querem nos humilhar com sua beleza inconquistável? Elas têm de fingir que não são reais, pois ninguém mais quer ser “real” hoje em dia.


Nos anos 60, sexo era revolução política. Tudo era político. O sexo utópico dos anos 60 era o prelúdio para outras conquistas sociais. O orgasmo para Reich era uma vitória contra a burguesia. Eu me lembro de ter dito para uma mulher amada: “Querida, nosso amor é uma forma de luta contra o imperialismo norte-americano”. O sexo dos 60 era um comício; queria acabar com a culpa, com o limite, com o proibido. Todas as sacanagens foram testadas, mas chegou-se ao outro lado com uma vaga insatisfação. O que faltava? Faltava o pecado. Sem o pecado ficávamos insuportavelmente livres. Em meio a tanta liberdade, nunca fomos tão solitários. Tudo era referido ao sexo, para substituir frustrações políticas e sociais.

Com a recaretização do mundo, a liberdade aparente conquistada andou para trás. A liberdade deu lugar à “dessublimação repressiva,” como nomeou Marcuse, uma “liberdade” tão ostensiva e grossa que é um louvor à proibição. Os sonhos viraram produto. Todas as conquistas viraram fetiches de consumo: revolta, igualdade, utopias, até o desespero e a angústia passaram a vender roupas e costumes.

O prazer é obrigatório no mercado. A partir dessa época, sob a aparência de grandes euforias narcisistas de gestos e risos de prazer, há um regressismo oculto no mundo de bundas e coxas lipoaspiradas, seios siliconados, bofes comedores. A anatomia virou uma das poucas portas de fuga da classe baixa, como uma saída para a miséria. Nuas, todas as mulheres são iguais: a democracia da bunda. A bunda é a esperança de milhares de Cinderelas. A mídia e a propaganda compraram a liberdade, que não é mais “uma calça velha e desbotada,” mas é a superação do pudor, da intimidade. Se alguma mulher ficar famosa, tem de tirar a roupa. O striptease é a “antiburka” — igual pelo avesso. A pessoa não tem mais um corpo; o corpo é que tem uma pessoa, frágil, tênue, morando dentro dele. O corpo e a pessoa são duas coisas diferentes; a menina mostra sua bunda como se fosse uma irmã siamesa. Tanta oferta sexual angustia-nos, dá-nos a certeza de que nosso desejo é programado por indústrias masturbatórias, provocando tesão para vender satisfação.

A verdade é que o prazer anda de cabeça baixa, deprimido, apesar do eufórico exibicionismo em revistas de celebridades. Todos podem confessar tudo: “Sim, eu gosto de atacar nos mictórios das rodoviárias e me orgulho de minha tara!” — diz o perverso sorrindo na TV. A permissividade total esvai a tesão. O prazer precisa da proibição. Aliás, o vício solitário é bem seguro. A punheta é metafísica. A masturbação a dois existe até no grande amor romântico, onde dois narcisismos se tocam, se beijam, se arranham, mas não se comunicam.

Ninguém mais quer ser “sujeito”, apesar de afirmar o contrário. Todos querem ser “inconformistas como todo mundo”. O corpo tem de dar lucro. Todo mundo quer ser coisa.

Vi um anúncio de uma boneca inflável que sintetizava o desejo secreto do homem de mercado: ter mulheres digitais que não vivam. O anúncio tinha o slogan embaixo: “She needs no food nor stupid conversation” (“Não precisa de comida nem de conversa fiada”). A liberdade de mercado produziu um estranho “mercado da liberdade”.

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