segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Ampla e irrestrita – O Globo / Editorial

Um valor incontestável do trabalho da Comissão da Verdade, resumido no relatório final entregue semana passada à presidente Dilma Rousseff, está naquilo em que, para os setores mais comprometidos com a consolidação do estado democrático de direito no Brasil, há absoluta unanimidade. A CV rasgou o incômodo véu que procurava manter encobertos episódios obscuros da ditadura militar, inclusive apontando responsabilidades no topo da hierarquia militar e também iluminando os porões, com a identificação de agentes públicos envolvidos em torturas e outros atos condenáveis contra opositores ao regime.

Iluminar essa lacuna na História brasileira tem o mérito de alertar para o perigo das aventuras políticas, à direita ou à esquerda, pautadas pelo autoritarismo. Mas, como já se desenhava no curso dos trabalhos da Comissão, a maioria de seus integrantes deu forma também a um preocupante equívoco, ao defender, no documento final, a revisão da Lei da Anistia. É um despropósito em relação ao qual a unanimidade passa ao largo, mas ainda assim a CV o consignou no relatório. Lamentável.

Esse avanço sobre matéria vencida em todas as instâncias em que foi apreciada, inclusive no Supremo, é perigosa extrapolação. A começar pelo pressuposto que embasou a lei. A anistia foi costurada entre militares e representantes da oposição para pacificar o país, tornando-se a expressão de um projeto que apostou na conciliação, e não no confronto, muito menos na violência ou em radicalismos revanchistas.

A Comissão da Verdade foi constituída em 2012, mais de três décadas depois da promulgação da Lei da Anistia como resultado de ampla negociação. O princípio da conciliação estava implícito no entendimento entre o Alto Comando e a sociedade civil, e explícito nos termos do projeto avalizado pelo Congresso, que aprovou o perdão recíproco. Em seguida, a anistia foi incorporada à Carta de 88 pela Assembleia Constituinte. Por si, foram procedimentos que lhe conferiram extrema força à lei.

Mesmo assim, atacada por grupos radicalizados no propósito de impor a limitação do seu alcance, a Lei da Anistia foi em sua totalidade referendada pelo Supremo Tribunal Federal. De forma oportunista, esses setores ainda tentam puxar para seus argumentos a suposta prevalência de tratados internacionais que condenam crimes como a tortura. Mas, como lembra o ministro do STF Marco Aurélio, eles não se sobrepõem à Constituição do país.

A proposta de uma revisão da anistia, se pudesse ser lavada a sério, para um acerto de contas com o passado, embutiria também a punição, a posteriori, de militantes da esquerda envolvidos no assassinato de agentes públicos. Mas, por conveniência, o que o relatório final da CV propõe é uma aplicação unilateral da lei. Ou seja, pune-se apenas um lado da “guerra suja”. De qualquer modo, a presidente Dilma teve uma reação positiva ao receber o documento, quando desoxigenou a ideia de o relatório dar margem a revanchismos. É o que se espera.


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