- Correio Braziliense
Se antes eram os antigos aliados de Dilma que aderiram de forma envergonhada ao impeachment, agora é a antiga oposição que empresta seu apoio envergonhado ao governo Temer
O julgamento da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que hoje entra no terceiro dia, expõe ao país as idiossincrasias de seus ministros e o drama político em que estamos mergulhados. Remete-nos à tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (1600-1602), de William Shakespeare, obra clássica da literatura universal, que data do Renascimento e está para a dramaturgia como Dom Quixote (1605-1615), de Miguel de Cervantes, para o romance. A frase To be or not to be, that is the question, no original em inglês, que intitula a coluna, foi eternizada por sua força dramática. É citada por Hamlet no “Ato III, Cena I” da peça, diante do crânio de Yorick, num momento em que que a reflexão do personagem se sobrepõe à ação.
Vingar ou não o pai é o dilema de Hamlet. Entretanto, no contexto em que foram escritos, os versos de Shakespeare transcendem a peça e refletem os homens diante das mudanças em curso no mundo que emergia da Idade Média, no qual a cortina de ideias preconcebidas que escamoteava a realidade política, econômica e social estava sendo rasgada por Hamlet e Dom Quixote. Tudo estava em transformação no Renascimento, a partir do heliocentrismo de Copérnico e da descoberta da América. Assim, a dualidade é a marca registrada da obra mais encenada de todos os tempos, que até hoje desafia seus intérpretes.
“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre/Em nosso espírito sofrer pedras e setas/Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,/ Ou nos insurgir contra um mar de provações/E em luta pôr-lhes fim?” Talvez essa dúvida hamletiana esteja instalada na cabeça dos ministros que se digladiam em plenário no Tribunal Superior Eleitoral, como o relator do pedido de cassação, ministro Herman Benjamin, e o presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes, que sinalizam resultados diferentes do julgamento, a partir da exegese de preliminares jurídicas que o povo não compreende.
Como na vingança de Hamlet, assim é o julgamento: “Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo/O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso/Toda a lancinação do mal prezado amor/A insolência oficial, as dilações da lei/Os doestos que dos nulos têm de suportar/O mérito paciente, quem o sofreria/Quando alcançasse a mais perfeita quitação/Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos/Gemendo e suando sob a vida fatigante/Se o receio de alguma coisa após a morte – Essa região desconhecida cujas raias/ Jamais viajante algum atravessou de volta/ – Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?”
Nos versos de Shakespeare, há fardo pesado, como para os ministros. Inédito, por se tratar do pedido de cassação de um presidente da República, cuja apreciação é transmitida em tempo real pelos meios de comunicação de massa e as mídias sociais: “O pensamento assim nos acovarda, e assim/É que se cobre a tez normal da decisão/Com o tom pálido e enfermo da melancolia/E desde que nos prendam tais cogitações/Empresas de alto escopo e que bem alto planam/Desviam-se de rumo e cessam até mesmo/De se chamar ação”. Qualquer que seja a decisão, é o futuro imediato de 207 milhões de brasileiros que está em jogo.
É política
O drama dos ministros do TSE gravita em torno das preliminares do mérito, ou seja, da decisão sobre as provas incluídas no processo após a petição inicial de seus autores. Se as provas forem consideradas válidas, como querem o vice-procurador-geral eleitoral, Nicolao Dino, e o ministro relator Herman Benjamin, com base em decisões anteriores da Corte, será muito difícil não cassar o mandato do presidente Michel Temer. A não ser que se desmoralize a própria Corte.
Se as novas provas não forem consideradas, estará aberta a possibilidade de absolvição de Temer ou de arquivamento do caso por perda de objeto, em razão do impeachment da presidente Dilma Rousseff, como aparentemente deseja o presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes. As chances de tudo ir parar no Supremo Tribunal Federal (STF), porém, são líquidas e certas, qualquer que seja o resultado do julgamento. Ou seja, o julgamento precisa ser confirmado pelo Supremo, onde se reproduzirá a dualidade hamletiana.
Não é à toa que a antiga oposição aguarda com ansiedade o julgamento. O governo Temer tem frente e verso. A frente era a participação da antiga oposição, que liderou o processo de impeachment; o verso eram o PMDB e os partidos que abandonaram Dilma Rousseff. A crise ética, na medida em que arrastou o presidente Temer para o olho do furacão, inverteu os papéis. Se antes eram os antigos aliados do PT que aderiram de forma envergonhada ao impeachment, agora é a antiga oposição que empresta seu apoio envergonhado ao governo. Esquizofrenia? Não, vicissitudes da política. O presidente Michel Temer, porém, revelou capacidade de resistência e combatividade que inibem os que tramam sua saída e fortalecem os aliados que desejam vê-lo governando o país até as eleições de 2018.
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