- O Estado de S.Paulo
Ele se foi no momento em que a nossa gente entra num labirinto ameaçador
A modernidade ampliou a potência das civilizações que têm sua alma no livro. Mas, além do conhecimento, divino ou humano, a leitura trouxe como efeito colateral o apego à letra, em detrimento do sentido. Milhares foram assassinados devido à leitura inculta, praticada por fiéis delirantes. Hoje o meio impresso é obnubilado pela internet. Mas a eficácia dos instrumentos que divulgam mensagens, tolas ou sábias, leva ao pedantismo ou zelo fanático. No Renascimento, editores e acadêmicos lançam a corrida ao livro, à fama, aos lucros. A passagem de manuscritos gregos e romanos ao prelo exige imenso labor coletivo. Para a venda dos volumes concorrem potentados, financistas, religiosos. O livro atinge setores amplos, anuncia a nova era científica, humanística, estatal.
Entre os ávidos consumidores das letras surgem indivíduos que delas se empanturram. Da indigestão literária brota a cultura pela metade, uma nova forma de ignorância douta. O apedeuta é prisioneiro de falas absurdas, as quais considera verdadeiras. Na Encyclopédie, Diderot afiança que o pedante é alguém “de uma presunção gárrula que fadiga os outros com o exibicionismo de seu saber em todo gênero, afetação de estilo e maneiras”.
O número dos que usam muitos textos e pouca ciência se mantém constante. Hoje a voga de edições caras para enfeitar prateleiras cede o passo aos escritos baratos de autoajuda, romances levemente pornográficos, biografias, etc. Em 2013, na Europa, os números eram os seguintes em termos editoriais: Inglaterra, 184 mil; Alemanha, 93.600; França, 66.530; Espanha, 76.430; Itália, 61.100. Os elementos são fornecidos por Jakub Marian. Em 2013, na França, os campeões de vendagem foram Asterix e três livros contendo os 50 matizes de cinza; 25% dos livros vendidos eram romances; 21%, de juventude; 13%, de turismo; 8%, escolares; 6%, quadrinhos; 6%, de aperfeiçoamento docente. Das edições eletrônicas de 2014 na França, cerca de 8,3 milhões de livros foram “baixados”. Para 1 milhão de compradores de livros foram oferecidos 26 milhões de livros impressos. Cerca de três quartos dos compradores de textos digitais também compraram livros impressos.
Há uma reflexão a ser feita. Sim, ondas de tolices eletrônicas “deram o direito de falar a uma legião de idiotas que antes apenas falava numa tasca de aldeia e depois de uns copos de vinho, sem prejudicar a comunidade. A televisão já tinha colocado o idiota de aldeia num patamar onde ele se sentia superior. O drama da internet é que promoveu esse idiota a portador da verdade” (Umberto Eco).
Mas nas redes existem páginas com saber rigoroso e útil. No Perseus Project é possível ler parte da literatura grega clássica, textos cujas palavras remetem a dicionários, gramáticas, estudos científicos. A Gallica, Biblioteca Nacional da França, apresenta gratuitamente milhões de livros digitalizados, antigos e modernos. Livrarias eletrônicas como a Questia oferecem a preço irrisório milhares de textos com os respectivos estudos. Mesmo quando o impresso dominou, o vezo pedante ou fanático recebeu o desafio de autores, editores e técnicos que publicavam livros essenciais para a vida espiritual. No Brasil tivemos vários que buscaram romper o círculo da mediocridade satisfeita. Um deles foi Jacob Guinsburg, o idealizador da Editora Perspectiva.
Examinando o catálogo da editora surgem textos que sintetizam a cultura moderna e a antiga. E não apenas nos múltiplos setores do pensamento – ética, estética, história, poesia, teatro, dança, teoria literária, religião, filosofia, arquitetura –, mas nos estudos eruditos de vanguarda que procuram entender aqueles campos de maneira inovadora e plural, ecumênica. O número de autores reunidos no rol dos publicados pela Perspectiva é espantoso. Citei acima uma sequência frásica de Umberto Eco contra a barbárie movida pela comunicação de massas ignaras. O desencanto do pensador deve ser percebido na sua trajetória acadêmica e pública. Guinsburg publicou-o em seus trabalhos iniciais, especialmente Obra Aberta e Apocalípticos e Integrados. Em ambas vemos uma pesquisa sem nostalgia das elites ou rendição ao populismo cultural. Tratava-se, para ele, seguindo o conselho de Spinoza, de não rir da cultura moderna nem chorar, mas de compreender. A mesma atitude assumida, ao longo de 97 anos, por J. Guinsburg.
Cada leitor das preciosidades unidas por J. Guinsburg recorda com carinho um ou outro título. Admiro o monumento erguido por Erich Auerbach: o livro Mimesis. Deixo as querelas suscitadas pelo autor na teoria e na história literárias. Trata-se de uma síntese encantadora da cultura ocidental, dos gregos aos nossos dias. Uma obra assim justificaria qualquer editora. Sem exagero, digo: volumes às centenas e centenas, no catálogo da Perspectiva, trazem a marca daquela genialidade. A produção promovida pela Perspectiva foi analisada em extensão e profundeza por estudiosos de todos os setores. Não me alongarei mais.
Devemos homenagear o ser humano Guinsburg. Em décadas de amizade, sempre fomos acolhidos por ele com simpatia, generosidade, entusiasmo e saber. Prudência política era o seu nome, ele que atravessou os regimes de força no Brasil, as lutas entre esquerda e direita, as intolerâncias. Defensor dos direitos humanos, assistiu ao antissemitismo triunfante que levou ao Holocausto sem jamais duvidar da força presente em seu povo. Sorvemos cada átimo de sua companhia. Com jeito de quem nada sabia, ele aprofundava informações históricas, antropológicas, políticas as mais diversas. Indicava de modo discreto caminhos de pesquisa. Ele se foi no momento em que nossa gente entra num labirinto ameaçador, quando a ausência do espírito cultural manifesta um vazio ameaçador. Fará enorme falta.
Mas os livros que publicou guardam o antídoto contra a ignorância, a truculência das seitas, o gigantesco pedantismo que circula na internet. Obrigado, professor Guinsburg!
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*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)
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