Há
razões para ver no governo Biden o começo de um ciclo de restauração do
conhecimento das ciências
O
discurso da vitória que o presidente eleito proferiu de Wilmington, sua cidade natal,
na noite do último sábado, à nação fornece-nos algumas pistas. Nele, Biden
deixou claro que não haverá recuperação econômica caso não exista um plano de
combate à pandemia. Além de afirmar a predominância da crise de saúde pública
sobre qualquer outro tema, a declaração do presidente eleito deixa em
evidência, assim, quais serão as prioridades de seu governo e a ordem delas.
Essas impressões se confirmam pelos próprios atos do presidente eleito no pouco
tempo que se seguiu. Após a vitória declarada no fim de semana pondo fim a dias
de apuração sob escrutínio e ansiedade de todo o mundo, a primeira ação de
Biden foi nomear um conselho de especialistas e cientistas para ajudá-lo a
reverter o descalabro norte-americano. Há vários dias são registrados aqui nos
EUA mais de 120 mil casos diários de covid-19, os hospitais em algumas
localidades do país estão chegando à sua capacidade máxima, os óbitos superam a
marca de 1.000 por dia. Nesse ritmo, não tardará para que se alcance a marca de
200 mil casos por dia, como têm advertido vários infectologistas de renome.
Biden
assumirá a Presidência em 20 de janeiro de 2021, momento em que, por força do
descaso do governo Trump, a epidemia provavelmente estará em seu ápice – e isso
contando as duas ondas anteriores de disseminação do vírus no país. A boa
notícia, entretanto, é que até lá é provável que se tenha clareza sobre o
sucesso das vacinas no último estágio de ensaios clínicos, antes que elas
possam ser autorizadas para a comercialização. O recente anúncio da Pfizer sobre os resultados
preliminares de sua vacina em colaboração com a BioNtech é promissor por várias
razões. A principal delas é o uso de uma parte da mesma proteína do vírus –
codificada no material genético da vacina – que vem sendo usada para o
desenvolvimento de outras vacinas. Ou seja, se a vacina da Pfizer de fato tiver
a eficácia comprovada nas próximas semanas, é razoável supor que outras vacinas
também apresentarão eficácia, ainda que em níveis diferenciados. Portanto, a
primeira metade do governo Biden pode vir a ser marcada pela resposta
bem-sucedida à pandemia, com o auxílio das vacinas que serão distribuídas ao
longo de 2021 e 2022. Caso tudo corra bem, o presidente eleito chegará no meio
de seu mandato com um legado definitivo.
Tal
legado terá grande influência nas eleições para o Congresso em 2022, com ou sem
trumpismo residual ou escancarado. Nos EUA, há eleições a cada dois anos, e em
2022 será eleita nova Câmara e um terço do atual Senado. Se Biden conseguir dar
cabo do vírus até lá, a chance de que obtenha um Congresso de maioria democrata
será concreta. Nesse cenário, poderá pôr em andamento sua agenda legislativa
com vistas aos planos de infraestrutura verde, fortalecimento das redes de
proteção social nos EUA, reconfiguração do sistema de saúde, cujas falhas
ficaram tão visíveis ao longo da pandemia.
Soa
bom demais para ser verdade? Talvez. Mas a política e, por conseguinte, a
história não são feitas apenas de obscurantismo, negacionismo, terraplanismo e
outros “ismos” nefandos. A política e a história também são espaço do
imprevisto, do imponderável, de grandes construções, de avanços e do término de
ciclos de horror cujo fim muitas vezes não vemos e temos mesmo dificuldade de
imaginar. Há razões para crer que o ciclo do trumpismo esteja no início do fim
. Há razões para ver no princípio do novo governo o começo de um ciclo de
restauração do conhecimento, das ciências – todas as ciências –, da verdade,
isto é, a promessa que a política também nos oferece, para além do horror.
Torçamos para que essa promessa também retorne ao Brasil em pouco tempo.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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