Donald
Trump foi derrotado pelo seu desprezo pelos valores democráticos – diferenças
devem igualar e não construir muros
Na
véspera de minha primeira viagem aos Estados Unidos, em 1963, recebi de Dick
Moneygrand – que iniciava suas pioneiras pesquisas no Brasil – um conselho
inesquecível. “Na América – recomendou – faça sempre o contrário do que manda o
seu brasileiro coração. Coma a pizza com a mão; não se preocupe com
desodorantes, mas pinte o cabelo; obedeça ao que estiver escrito, jamais
encoste a mão no seu interlocutor e não olhe fixamente para uma mulher bonita.
Seja compulsivamente pontual e, acima de tudo, note bem – recomendou meu amigo
com ênfase –, acalme-se quando sua reclamação for importante. Quanto mais
difícil for o seu problema, mais calmo você deve ficar. Lembre-se de que, nos
Estados Unidos, não existe o vosso nervoso e recorrente ‘Você sabe com quem
está falando?’”
*
O
narcisismo e a base teatral da arrogância de Donald Trump me fez supor que
Joseph Biden seria derrotado. Afinal, dizia meu julgamento cultural brasileiro,
ele é idoso, é muito controlado e enfrenta uma dura polarização. Puxando,
porém, pela memória, me lembrei de como os americanos enfrentaram polarizações
muito mais tenebrosas como, em 1860, a Guerra Civil; na década de 50, o
macarthismo fascista; em 1960, o movimento pelas liberdades civis, e outros
eventos nefastos com decisiva serenidade democrática.
Talvez
a quietude seja um traço cultural puritano que obriga a aprender com os erros,
convoca calma diante da pressa, resistência diante da agressão e controle
diante do nervosismo. Um otimismo e uma confiança que a nossa ética da
malandragem e do jeitinho trata como ingenuidade. Mas foi como eles reagiram a
Pearl Harbor, ao assassinato de John Kennedy, ao terrorismo das Torres e,
agora, diante da presidência etnocêntrica e antiglobalista de Donald Trump.
Trump
sabe agora que não foi eleito rei, mas presidente. Conforme os recém-eleitos
enfatizaram nas suas falas inaugurais, eleitos recebem periodicamente mandatos.
Tarefas legitimadas pelo voto.
*
Algo
jamais discutido no Brasil, onde os eleitos literalmente não inauguram, mas
“tomam posse” de cargos que garantem a impunidade e facilitam o enriquecimento.
No Brasil, os eleitos pelos pobres ficam imensamente ricos. Além disso,
esquecem seus compromissos e atuam pessoalmente. Tal como Bolsonaro, eles se
comportam de modo absolutista, olvidando que mandato não é fidalguia.
*
Donald
Trump foi derrotado pelo seu desprezo pelos valores democráticos – diferenças
devem igualar e não construir muros e, acima de tudo, a preocupação com o
planeta e não apenas com o seu poderosíssimo país.
*
Essa
vitória da democracia americana renovou em mim a crença nos ideais perdidos. Os
únicos, aliás, pelos quais vale a pena lutar. Foi como um escutar da
inteligência. Sobre isso, diz Thomas Mann: “O intelecto humano é fraco
comparado com a vida instintiva do Homem. Mas há algo especial nessa fraqueza –
a voz do intelecto é suave, mas ela não descansa antes de ter adquirido
ouvidos. No fim, depois de inúmeras e repetidas rejeições, ele os encontra”.
*
Tive
a tentação de chamar essa crônica de “Mister Biden goes to Washington” (O
senhor Biden vai a Washington) porque a vitória de Biden&Harris tem sido
valorizada pelo recalcitrante narcisismo de um Trump que rejeita o princípio da
realidade e não aceita a derrota. A dramaticidade da vitória levou-me ao filme
de Frank Capra, realizado em 1939. No filme Mr. Smith Goes to Washington conta-se como um
ingênuo senador suplente chega à capital das tramoias e dos cínicos realistas
para derrotar com sua inocente integridade (toda integridade é inocente) um
político corrupto e restabelecer valores adormecidos.
Quando
ouvi o emocionante discurso de Kamala Harris – negra, filha de imigrantes, mãe
indiana e pai jamaicano, educada naqueles Estados Unidos que reencarnavam a
América –, veio-me a lembrança de um rapaz de Niterói que, graças à filantropia,
foi estudar em Harvard e lá foi tratado como um igual. Daí ao filme de Capra
foi um passo, pois rememorei o seu espírito e, na sua obra, a marca democrática
dos que torcem pela igualdade como eu. Aquele momento foi, não tenho a menor
dúvida, editado por Capra. Era a vida imitando no campo sujo da política, a
arte; ou era o ideal democrático fundado em eleições a afirmar que existem
ideais?
*É historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’
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