A
atitude desprezível e repugnante do presidente Bolsonaro de festejar a
paralisação dos testes com a Coronavac, vacina chinesa que está sendo produzida
pelo Instituto Butantan em São Paulo, como uma vitória política sobre o
governador João Dória, dá bem a dimensão desumana desse político, que brada que
o país tem de parar de ser “terra de maricas” e encarar de frente a pandemia.
Se
não fosse a barreira do Centrão, esta seria a milionésima vez em que Bolsonaro,
cometendo mais um crime de responsabilidade, poderia ser impedido pelo
Legislativo de continuar à frente do governo. Não tem a menor condição
psicológica ou moral para exercer a presidência da República uma pessoa que não
consegue ter empatia com os cidadãos do país que teoricamente lidera.
O
tiro de misericórdia tentado acabou saindo pela culatra, pois o pobre do
voluntário que morreu, cometeu suicídio ou foi vítima de uma overdose,
ocorrência que nada tem a ver com a vacina. O fato de que, mesmo depois de
esclarecido o caso, a Anvisa não autorizou a retomada dos testes, mostra que há
mais do que uma exagerada cautela por parte do órgão governamental.
Mas
há indicações de que o prejuízo pode ser muito maior, pois pesquisas realizadas
pelo cientista político Carlos Pereira, com Amanda Medeiros, da Fundação
Getulio Vargas do Rio, e Frederico Bertholini, da Universidade de Brasília
(UNB), mostram que a maneira como o governo brasileiro está tratando o combate
à COVID-19 tem feito com que muitos dos seguidores de Bolsonaro abram
divergência em relação ao desprezo que ele tem pelo distanciamento social e uso
de máscara.
A
crise da vacina é apenas mais uma fase desse negacionismo governamental, apesar
dos mais de 5 milhões de infectados e mais de 160 mil mortos. Há também
indicações de que a polarização entre os extremos, da esquerda e da direita,
está cansando os cidadãos, assim como nos Estados Unidos a virulência de Trump
abriu espaço para a vitória do conciliador Joe Biden.
Pereira
diz que já é possível observar esse fenômeno nas eleições municipais, “pois os
candidatos que estão sendo apoiados por Lula e por Bolsonaro estão apresentando
performance pífia nas pesquisas de opinião”.
As
pesquisas que Carlos Pereira e outros vêm fazendo sobre as consequências da
pandemia mostram, segundo ele, “choque exógeno de proporções tectônicas”.
Segundo sua análise, o jogo polarizado entre os extremos estava em relativo
“equilíbrio” não apenas no Brasil, mas no mundo, cada um dos polos se
retroalimentando. Consumiam informações que reforçavam suas crenças anteriores,
e rejeitavam à princípio qualquer informação que contrariasse as suas
respectivas identidades.
“As
identidades próprias de cada grupo serviam, por um lado, como elementos de
pertencimento e aconchego. Mas, por outro, como um escudo ou filtro protetor
contra as identidades e valores do grupo rival”. As pesquisas de opinião
experimentais que vem desenvolvendo, agora na terceira fase, sugerem que a
COVID-19 “foi um choque exógeno de grandes proporções que abalou ou mesmo
deslocou os eixos da polarização política no Brasil”.
O
“medo da morte” gerado pela pandemia trouxe muitas incertezas, “e nessas
condições de risco aberto, as saídas polares começaram a perder sentido,
capacidade de agregação e fadiga”. Segundo Carlos Pereira, “uma parcela não
trivial de eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018 abandonaram o presidente
e não mais consideram votar em sua reeleição em 2022”.
Esse
extrato populacional de perfil mais pragmático, as pesquisas mostram, está em
busca de alternativas moderadas que preencham suas expectativas. O efeito da
proximidade com o risco de morte associado à COVID-19 também é percebido nas
avaliações sobre as ações do presidente e dos governadores, ressalta Pereira.
Muitos
dos que se autodenominam de direita e centro-direita “se tornaram mais maleáveis
quanto mais próximos esses eleitores se encontram de pessoas que desenvolveram
a doença, em especial se vieram a óbito”. A gravidade da contaminação que
eventualmente venha a gerar óbito leva as pessoas a minimizar as potenciais
perdas econômicas.
“O medo da morte parece não aproximar apenas polos ideologicamente opostos, mas também diferentes classes sociais e pessoas que estão vivenciando diferentes níveis de prejuízos econômicos em decorrência da política de isolamento social”.
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