Folha de S. Paulo
Liberalismo mal digerido quer a Idade Média
do futuro, com Estado dividido em guildas
Lula ganhou o debate sobre a taxa de juros
—menos nos editoriais, no colunismo e, justiça se faça às respectivas
coberturas, também no noticiário. Roberto Campos Neto, presidente do Banco
Central, surgiu como o candidato a genro ou a sogro nacionais. É lhano, suave,
educado e sugere alguma introspecção e vida interior. Chegou a anunciar e a pregar
"boa vontade" com o governo. Uau! Havendo interesse,
procurem saber o que é o "Quadrado Semiótico de Greimas" para
identificar quem Campos Neto entende ser o "doador" e o
"donatário" nessa relação. Trata-se de uma concepção de Estado tão
absurda que nem errada chega a ser —é mal de uma era; volto ao ponto mais
tarde. É muita ousadia para quem não consegue explicar por que temos o maior
juro da Terra. Inigualável como a pororoca.
O proselitismo que se produziu sobre a questão sugere uma derrota do petista por nocaute. Deixo, em princípio, a economia para a pletora de expertos (com "x"). O que me incomoda, no que respeita à política, é a gritaria autoritária que tenta cassar a palavra do presidente da República, como se o BC fosse a sarça ardente, que não pode nem ser mirada, de onde emana a palavra revelada Daquele que Não Tem Nome. É incompatível com a democracia. "Ah, mas você criticava Bolsonaro quando atacava o STF." Fato. Se for preciso explicar a diferença, o esforço será inútil. Então não. Adiante.
Num seminário do BTG Pactual, uma trinca de
ouro do mercado sustentou, na
quarta (15), que a meta de inflação perseguida pelo BC é
inatingível. Refiro-me a Luís Stuhlberger (Verde Asset), Rogério Xavier (SPX
Capital), o mais enfático, e a André Jakurski (JGP). Não os estou listando como
pessoas que endossam minhas opiniões. Lembro o caso de Stuhlberger: sua opinião
sobre a PEC da Transição pautou toda a imprensa. E eu discordei de tudo.
Disse Xavier: "Só alcançamos inflação a 3%
uma única vez, em 2016. Agora que a gente passou por todas essas situações
inflacionárias, o Brasil resolveu fazer a meta em 3%. Nos EUA, a meta é 3,5% e
no Brasil vai ser 3%? É falta de bom senso". E ainda: "As pessoas nos
supermercados vivem com inflação de 10%, 12%. É outra realidade. Eu acho que o
custo de carregar uma meta desse tamanho é gigantesco, seja financeiro, seja
social, seja político, porque, uma vez que você não atinge as metas, o Banco
Central fica restritivo na política monetária". Luiz Carlos
Trabuco, presidente do Conselho de Administração do Bradesco,
afirmou nesta quinta (16): "Hoje, percebemos que o debate sobre os juros
necessários para combater a inflação está permeado de ponderações sobre
atividade econômica e emprego. É justo e correto dar mais complexidade ao tema
da política monetária".
Pergunto se Três Ases e um Trabuco serão
vistos como patetas ou como parte "dessa gente" —deve-se dizê-lo com
um misto de desprezo e ironia— que venceu as eleições para destruir os marcos
do nosso capitalismo porque imagina, como escreveu um articulista, "estar
ainda na Vila Euclides". A indagação é retórica. É certo que os
empresários serão tratados com respeito. E assim deve ser. Eis o busílis.
Entende-se legítimo que operadores de
mercado discordem das decisões do BC com uma dureza que Lula não ousou ter, mas
se profere o anátema contra o herege que é detentor de um mandato popular. Na
origem, há o ódio à política, que nos levou a contemplar o abismo, e uma
ojeriza ao Estado típica de teses liberais mal digeridas. Ambicionam vê-lo
fracionado em autarquias "independentes" em nome da eficiência.
Trata-se de uma reedição das guildas medievais. "Cultuam outra Idade Média
situada no futuro, não no passado", com metaverso e ChatGPT. Não que
fossem me convidar, mas me recuso a participar da arruaça intelectual da 5ª
Série de Chicago.
Lula tomou para si a responsabilidade
política de acusar a nudez do rei "autônomo". As democracias
aposentaram o monarca absolutista e alçaram ao poder, pelo voto, os antigos
bobos, que de burros nada tinham (Leiam "O Bobo", de Alexandre
Herculano). E o fizeram para que rompessem silêncios e falsos consensos de
cortesãos. Como se nota, nem o trio de ouro explica por que os nossos juros são
a maior pororoca da Terra.
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