Folha de S. Paulo
A novela bifurca-se nas hipóteses
ficcionais 'Caso de polícia' e 'O mito da Fênix'
O ato introdutório não trouxe surpresa. Do
aeroporto de Brasília emergiu um Bolsonaro miniaturizado: o líder que fugiu
enquanto seus devotos idiotas sofriam as consequências do ato golpista
engendrado por seus discursos. A recepção teve os contornos de um cortejo
fúnebre político, com as presenças sombrias de um Valdemar e um Braga Netto e
sólidas ausências de antigos aliados, na moldura da algazarra de uma diminuta
turba de zumbis vestidos em camisetas amarelas.
Daí, a novela bifurca-se em hipóteses
ficcionais distintas. Batizo a primeira como "Caso de polícia" e a
segunda como "O mito da Fênix".
1. Caso de polícia
Na noite anterior à aterrissagem, uma reunião discreta, restrita, no Alvorada delineou a postura do governo. Alguém, talvez um Padilha ou um Dino, deu o tom da resposta oficial: um silêncio ensurdecedor. Lula, ele mesmo, enviou a orientação à presidente petista. Na linha combinada, um porta-voz secundário do partido declarou à imprensa que "Bolsonaro é caso de polícia, não de política".
A estratégia solicitava uma renúncia: Lula
e os seus abririam mão da polarização retórica destinada a aquecer a base
militante. Perde-se de um lado, ganha-se muito mais de outro. O governo não se
distrairia das suas prioridades econômicas, sociais, ambientais e diplomáticas.
De quebra, esvaziaria preventivamente a narrativa bolsonarista sobre uma
suposta perseguição política conduzida a partir do Planalto: Bolsonaro não
teria o privilégio de interpretar o personagem do mártir.
A circunspecção de Lula surpreendeu gregos
e troianos. Sem o contraponto de Lula, Bolsonaro perdeu os alvos fáceis,
reduzindo-se ao papel de um bufão anacrônico.
Nessa versão fictícia, o sistema judicial
resolveu seguir a lei. O Ministério Público desistiu de fazer política,
concentrando-se nas suas funções constitucionais. A Polícia Federal juntou as
peças de acusação que ainda faltavam. Juízes sem partido acolheram as denúncias
de crimes contra a saúde pública, de violação dos direitos dos indígenas e de
atentados múltiplos contra as instituições democráticas.
No fim, Bolsonaro tornou-se réu em
diferentes processos, encolhendo à sua verdadeira estatura. Provou-se,
finalmente, que a "lei das gentes" vale para todas as gentes.
2. O mito da Fênix
Na versão ficcional alternativa, a reunião
promovida por Lula não foi tão restrita. Nela, um Teixeira ou um Costa inspirou
a estratégia de retomada da polarização. "O genocida retornou para dar
ordens diretas àquele cidadão do Banco Central que sabota nossa economia",
vociferou o presidente, para júbilo do círculo de operadores bolsonaristas.
A fênix, ave imortal da mitologia grega,
perece em chamas, mas renasce periodicamente de suas cinzas. Jair replicou, no
tom de sempre, mencionando o "ex-presidiário que voltou à cena do
crime". O teatro político seguiu o roteiro mais previsível. Lula
aproveitou para conectar Bolsonaro a Moro e a Lava Jato ao maléfico Departamento
de Justiça dos EUA, dando curso à sua vendetta pessoal. Uma certa Gleisi, feliz
como nunca, enxergou a oportunidade de associá-lo a Roberto Campos Neto, ao BC
e à taxa Selic, sabotando o plano de Haddad de reaproximar as políticas fiscal
e monetária.
A guerra verbal recrudesceu nas redes
(anti)sociais dos mortos-vivos Carlos, Michelle, Bia, Damares e Deltan.
Enquanto a briga de rua distraía o público, as engrenagens do sistema de
Justiça permaneceram estagnadas. Bolsonaro só teve que dar explicações sobre os
mimos sauditas. Uns vândalos de terceira receberam punições pelo 8 de janeiro.
As palavras "genocídio" e "terrorismo" continuaram a
circular, como enfeites de uma farsa. O relógio da história andou para trás:
Bolsonaro nasceu de novo, à frente de uma oposição extremista.
Torço sem muita esperança pela primeira
versão. A razão me diz que prevalecerá a segunda.
2 comentários:
Perfeito.
Puxa, o DEMÉRITO falou mais de Lula do q do genocida neste texto de "as duas voltas de bolsonaro".
Sugiro mudar a manchete pra "Lula nas duas voltas de bolsonaro".
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