sábado, 1 de abril de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Lei das Estatais ainda continua sob ameaça

O Globo

Ministros do Supremo deveriam derrubar liminar que enfraqueceu regras para facilitar vida dos políticos

Em dezembro, a Câmara dos Deputados, numa votação acompanhada de perto pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), modificou a Lei 13.303 de 2016, conhecida como Lei das Estatais, para facilitar a nomeação de políticos nas empresas públicas. Era a primeira manobra para ajudar o futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva a ter cargos a oferecer nas negociações para construir sua base parlamentar no Congresso. Não parou por aí.

No final daquele mês, diante da resistência do Senado para recolocar as estatais no tabuleiro do jogo político, o PCdoB, partido aliado do PT, ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra dispositivos da lei que apenas repetem normas adotadas em empresas privadas quando contratam executivos para o alto escalão.

A Lei das Estatais exige formação acadêmica compatível com o posto, dez anos de experiência na área de atuação da estatal (ou quatro em cargos de “chefia superior” em empresa de porte na área da estatal) e impõe quarentena de três anos para quem atuou na liderança de partidos ou de campanha eleitoral. O governo temia pelas nomeações de Aloizio Mercadante para o BNDES e do então senador Jean Paul Prates (PT-RN) para a Petrobras. O argumento de que Mercadante coordenou a campanha de Lula sem remuneração foi aceito pelo Tribunal de Contas da União (TCU), e Prates renunciou ao mandato.

A ação entrou em julgamento no plenário virtual do STF, sob a relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, em 10 de março. Logo recebeu pedido de vista do ministro André Mendonça. Tudo aconteceu então em alta velocidade. O PCdoB, alegando que empresas públicas têm prazos a cumprir nas nomeações, pediu medida cautelar ao relator. Lewandowski concedeu liminar anulando a parte sensível da Lei das Estatais — em particular a quarentena de três anos —, sob o argumento de que ela contém inconstitucionalidades. A decisão dele flexibilizando a lei foi posta ontem em votação no plenário virtual, mas o ministro Dias Toffoli novamente pediu vista. Com isso, por ora está mantida a decisão de Lewandowski.

Promulgada no governo Michel Temer, a Lei das Estatais foi redigida sob a inspiração das descobertas feitas pela Operação Lava-Jato acerca do relacionamento promíscuo entre empreiteiras, políticos e a Petrobras. O resultado foram regras e critérios para a escolha de dirigentes e conselheiros de estatais coerentes com o dever dos governos de defender a lisura no uso do dinheiro do contribuinte e compatíveis com a legislação mais moderna de combate à corrupção.

As evidências de que a lei funcionou para barrar ilegalidades são abundantes, mas apenas uma basta para entender a transformação que ela representou nas relações das estatais com o universo da política. A Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, do Ministério do Planejamento, criou um indicador para medir a qualidade da governança das empresas públicas. Em 2017, elas tinham nota média de 4,15. Em 2022, deram um salto para 8,07. Os ministros do Supremo deveriam prestar atenção a esse tipo de dado, derrubar a liminar de Lewandowski e restaurar a Lei das Estatais na íntegra.

Fragilidade jurídica da denúncia contra Trump terá efeito político

O Globo

Com chance de fracassar no tribunal, acusação é pretexto para que, na campanha, ele alegue ser perseguido

Donald Trump é o primeiro presidente americano a se tornar réu, no caso envolvendo a atriz pornô Stormy Daniels. O mais surpreendente é ter demorado tanto. Trump nunca demonstrou apreço pela lei e governou como se estivesse fora de seu alcance. É alvo de várias investigações. É uma lástima que justamente a conduzida em Nova York tenha sido a primeira a originar um processo criminal. Há muitas dúvidas sobre a sustentação jurídica do caso para chegar a uma condenação.

Pré-candidato republicano nas eleições do ano que vem, Trump explora o caso para incendiar a sua base eleitoral. Para ele, a decisão tem motivação política. O promotor à frente do processo, Alvin Bragg, é democrata, mas a decisão foi referendada por júri popular. Nos próximos dias, Trump deverá comparecer a um tribunal de Manhattan para registrar suas digitais, ser fotografado e talvez algemado (embora seja provável que escape desse constrangimento).

O teor da denúncia ainda não foi divulgado oficialmente. Segundo informações da imprensa americana, Trump é acusado de fraude e de violar regras eleitorais por ter escondido pagamentos feitos a Stormy Daniels antes das eleições de 2016, para que ela ficasse quieta a respeito de um antigo caso amoroso com ele. O advogado de Trump na época, Michael Cohen, fez um contrato sem esclarecer as motivações e pagou US$ 130 mil a Daniels, dinheiro ressarcido por Trump depois das eleições. Pela lei de Nova York, falsificar ou fraudar contratos é uma contravenção.

Na visão de Bragg, Trump cometeu um crime mais grave, previsto na legislação federal. Baseado na tese de que o silêncio de Daniels beneficiou sua candidatura à Presidência, Bragg argumenta que o dinheiro foi uma doação ilegal de campanha. Somente uma condenação por esse crime levaria Trump à prisão. Mas nunca a lei estadual de Nova York foi usada para dar sustentação a uma acusação de violar regras eleitorais federais. A chance de a denúncia naufragar na Justiça é considerável.

Trump também é alvo de uma investigação sobre esforços para fraudar os resultados da última eleição na Geórgia. Pode ser denunciado noutra sobre a tentativa de atrapalhar a transferência de poder a Joe Biden. A posse de documentos secretos depois da saída da Casa Branca também está em apuração. Noutra frente, procuradores processam Trump por ter inflado o valor de bens de sua empresa.

Apesar da fartura de evidências em alguns casos, é possível que ele escape de condenação, pelo menos até a eleição de 2024. Depois de tudo o que fez contra a democracia americana, seria irônico se o processo de Nova York servisse para pavimentar sua volta à Casa Branca.

Dúvidas fiscais

Folha de S. Paulo

Mérito de Haddad, proposta dá racionalidade ao debate, mas ainda gera ceticismo

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfim divulgou as linhas gerais de sua proposta de regra fiscal para substituir o hoje desfigurado teto constitucional de gastos. A providência, louvável, ainda dá margem a dúvidas consideráveis.

De melhor, o ministro Fernando Haddad, da Fazenda, foi bem-sucedido em obter de Lula compromisso formal com uma legislação destinada a conter a escalada da dívida pública, ainda a ser apreciada pelo Congresso Nacional.

Dissipam-se, ao menos por ora, discursos vazios contra a austeridade orçamentária e especulações em torno de teses econômicas exóticas. O debate já pode se dar a partir de bases mais racionais.

A esse respeito, o foco da gestão petista se assenta sobretudo no aumento das receitas para restaurar superávits. Com hipóteses otimistas e risco de que a execução se mostre insuficiente, a proposta foi recebida com reservas por grande parte dos especialistas.

A regra da Fazenda se alicerça em duas restrições. A primeira delas busca limitar o crescimento da despesa a um ritmo menor (70%, como regra geral) que o da receita efetiva. A isso se soma um intervalo —de 0,6%, no mínimo, a 2,5%, no máximo— para a variação dos gastos anuais acima da inflação.

Vale dizer: mesmo que a receita não cresça, haverá o aumento da despesa pelo menor percentual.

Argumenta-se que assim será atenuada uma tendência pró-cíclica do Orçamento, ou seja, de cortes dolorosos nos momentos recessivos. Certo é que o gasto seguirá crescendo todos os anos.

A segunda restrição é uma meta de superávit primário (receitas menos despesas, fora juros), que será crescente entre 2023 e 2026: de um déficit de 0,5% do PIB neste ano até um saldo positivo de 1% ao final do período. Haverá ainda uma banda de 0,25 ponto percentual em torno dessas cifras.

Haverá um ajuste no gasto se o saldo ficar abaixo da meta. Nessa hipótese, a alta do desembolso não poderá superar 50% do crescimento da arrecadação.

O mérito da proposta, repita-se, é fixar referências para o debate, felizmente numa trajetória de restauração da poupança pública. Este é o fato político mais importante.

É inegável, porém, que o cumprimento das metas depende de muito mais arrecadação, o que Haddad promete buscar com medidas incertas —e que renderiam improváveis R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões.

O caminho para o sucesso, doravante, é não abandonar os esforços de reforma e modernização do Estado e cortes de despesas obsoletas. Apenas metas otimistas não sustentarão a confiança. Será preciso trabalhar arduamente.

Xadrez central

Folha de S. Paulo

Novo bloco rearranja forças na Câmara, mas agenda programática ainda é obscura

É peculiar da política brasileira a distinção entre o centro, campo de posições moderadas encontradiço em todas as democracias, e o centrão, que aqui tradicionalmente designa parlamentares e partidos dispostos a ajudar governos à direita ou à esquerda em troca de cargos e verbas públicas.

No Brasil, o centro se esvaziou eleitoralmente nos últimos anos de polarização entre bolsonaristas e petistas. Já o centrão tomou o controle do Congresso —particularmente com a consolidação de Arthur Lira (PP-AL) no comando da Câmara dos Deputados— e hoje não faz parte da base de sustentação ao Palácio do Planalto.

Entretanto as divisas entre centro e centrão nem sempre são claras, como demonstra um novo movimento no quadro partidário nacional capaz de afetar as relações entre o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o Legislativo.

Cinco legendas —PSD, MDB, Republicanos, Podemos e PSC— decidiram atuar em bloco na Câmara, tornando-se a maior força da Casa com 142 dos 513 deputados. O caso mais surpreendente no grupo é o do Republicanos, que deixou o centrão para associar-se a duas siglas centristas, PSD e MDB, abrigadas no governo Lula.

De mais imediato, o novo bloco se torna um contraponto ao poder de Lira, que, eleito com um recorde de 464 votos dos colegas, hoje se acha no direito de desafiar até as normas constitucionais da tramitação de medidas provisórias para exercer sua influência.

Em tese ao menos, a articulação pode favorecer uma atuação do Republicanos, que tem 42 deputados e apoiou Jair Bolsonaro (PL) na eleição presidencial, mais moderada ou menos hostil a Lula.

O nome de maior visibilidade do partido hoje é o do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas —que chegou ao posto com votos bolsonaristas, mas até aqui tem evitado radicalismos ideológicos em sua administração. Seu secretário de Governo é o ex-prefeito da capital Gilberto Kassab (PSD), de notória flexibilidade política.

É cedo, claro, para prever os efeitos do novo quadro partidário da Câmara. O próprio Lira faz seu movimento ao buscar um entendimento entre o seu PP, ligado no centrão ao PL de Bolsonaro, e a União Brasil, o mais problemático dos partidos no ministério de Lula.

A melhor hipótese, dependente de boa dose de otimismo, é que fiquem mais claras as orientações programáticas, para além dos interesses fisiológicos imediatos, no xadrez de siglas da política brasileira.

Licença para gastar

O Estado de S. Paulo.

Do que foi revelado, a proposta de âncora fiscal do governo não tem uma única medida concreta para rever gastos e aposta em aumento irreal de receitas. Já se sabe onde isso vai dar

O governo de Lula da Silva demorou, mas apresentou sua proposta de arcabouço fiscal. O mecanismo, segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vai fixar o crescimento das despesas a 70% do avanço das receitas. Em paralelo, os gastos terão um piso e um teto, que garantirão a eles um aumento real de 0,6% a 2,5% acima da inflação. Esse plano, de acordo com o governo, seria capaz de reduzir o déficit primário a 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, zerá-lo em 2024 e gerar um superávit em 2025 e 2026.

Após a euforia inicial gerada pelo anúncio, economistas começaram a se ater aos números e detalhes da proposta. A primeira dúvida diz respeito ao rombo para este ano. Na semana passada, na divulgação do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias do primeiro bimestre, o Ministério da Fazenda havia reduzido a estimativa de déficit primário de R$ 228,1 bilhões, o equivalente a 2,1% do PIB, para R$ 107,6 bilhões, ou 1% do PIB.

O que fez com que o governo cortasse a projeção do rombo de 1% para 0,5% do PIB passados apenas oito dias permanece uma incógnita. Tudo indica, no entanto, que essa mudança teria relação com um outro pacote, ainda a ser apresentado, cujo objetivo é rever parte dos subsídios e renúncias tributárias e onerar setores que hoje não recolhem impostos, como o de apostas eletrônicas. Esse plano elevaria a arrecadação federal em R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões.

Assumir essa projeção de aumento de receitas como um fato concreto é de um otimismo que beira a ingenuidade, considerando a articulação que esses grupos de interesse conquistaram no Congresso. Mas o problema é que esse aspecto resume a essência da proposta do arcabouço fiscal do governo, que aposta num crescimento irreal de receitas e não propõe uma única medida concreta para rever os gastos estruturais da União. Ao contrário: se há algo que esse mecanismo assegura é que as despesas cresçam ano a ano e sempre acima da inflação, o que é suficiente para colocar em xeque qualquer previsão de superávit primário.

Há outros detalhes questionáveis a respeito das bases do novo arcabouço fiscal e que o enfraquecem já de saída. A regra não atinge os fundos que bancam o piso salarial dos professores e da enfermagem, bem como mantém os mínimos constitucionais estabelecidos para saúde e educação, independentemente das reais necessidades das áreas e do recorrente empoçamento de recursos orçamentários que esses setores registram ano a ano. Da mesma forma, os investimentos estão fora do escopo da âncora. O patamar atual, de R$ 70 bilhões a R$ 75 bilhões, será mantido e corrigido pela inflação mesmo que as receitas sejam frustradas, mas poderá ser ampliado, de maneira extraordinária, caso a arrecadação supere as projeções do governo.

Na entrevista em que a proposta foi detalhada, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, ao defender a flexibilidade do arcabouço, criticou a rigidez do teto de gastos e as recorrentes emendas constitucionais aprovadas para alterá-lo. Mas, na ânsia de elaborar algo exequível, o governo perdeu a mão. Se houver superávit primário no fim do mandato de Lula, a única forma de atingi-lo sem reformas que revisem os gastos obrigatórios será pela elevação de uma carga tributária já bastante alta. Do contrário, essas despesas serão financiadas da mesma forma como têm sido arcadas nos últimos anos, via endividamento – o que retroalimenta a inflação e exige o aumento da taxa básica de juros.

A nova regra, segundo Ceron, permitirá ao governo fazer escolhas. Se é assim, a primeira escolha parece muito clara: assegurar condições para que todo e qualquer gasto possa ser realizado. Foi exatamente a prática adotada pela administração de Dilma Rousseff, que levou o País a uma recessão cujos efeitos ainda não foram completamente superados. A opção por um Estado eficiente foi mais uma vez descartada. E, se mesmo um arcabouço frouxo como este foi alvejado pela ala política do governo e por lideranças e parlamentares petistas, é o caso de o País começar a se preocupar.

Trump no banco dos réus

O Estado de S. Paulo.

O caso prova a integridade da política e da Justiça. Os políticos precisam se provar capazes de separar o que é da política e o que é da Justiça. A Justiça precisa se provar apartidária

O Estado Democrático de Direito norte-americano enfrentará um imenso desafio. Na última terça-feira, pela primeira vez na história, um ex-presidente dos Estados Unidos foi indiciado por crime. Entre as quatro investigações penais que correm contra Donald Trump, a acusação da Procuradoria de Nova York de violação de regras de financiamento eleitoral é a menos grave. Mas já está sendo conclamada por democratas e republicanos como uma batalha pela “alma da nação”. A conduta do mundo político e jurídico pode revitalizar as bases da democracia e da Justiça nos EUA, mas também pode degradá-las a um ponto inaudito.

O caso está sob sigilo e os detalhes só virão a público nos próximos dias. Mas sabe-se que a denúncia do procurador de Manhattan, Alvin Bragg, envolve o pagamento a uma atriz pornô, durante as eleições de 2016, para que ela mantivesse confidencialidade sobre um relacionamento que teria tido com Trump. O dinheiro foi pago pelo advogado de Trump, registrado pela campanha como “despesas legais” e reembolsado pelo candidato. A expectativa é que a procuradoria acuse Trump por ter doado dinheiro para a própria campanha sem declará-lo.

Mesmo que seja condenado, as apelações podem se estender por anos. Enquanto isso, Trump seria elegível. A Justiça não tem pressa. Mas a política tem. O choque sísmico foi imenso. Trump não só é um ex-presidente, mas o favorito a vencer as primárias da oposição republicana para as eleições de 2024.

Trump já tinha antecipado publicamente o indiciamento e o acoplou – com as alegações de conluio com os russos, dois impeachments malogrados e a busca e apreensão pelo FBI de documentos secretos em sua casa – ao seu rol de acusações de “perseguição política”. Previsivelmente, ele explorará o caso para promover sua narrativa de líder do povo vitimado pelas elites entranhadas em um deep state corrupto.

Os excessos democratas podem lhe dar de bandeja a alavanca para resgatar a popularidade com os republicanos que, como se viu nas últimas eleições, vinha se deteriorando. Para muitos estrategistas democratas isso seria conveniente. Como sugeriu o Wall Street Journal, “eles creem que ele seria o candidato mais fácil de vencer porque ele motiva os democratas e divide os republicanos e independentes”.

Há ampla artilharia para escalar a guerra cultural: um caso extraconjugal que ecoa os imbróglios de Bill Clinton; um procurador negro que já foi chamado por Trump de “animal”; e, para piorar, há um complicador constitutivo do sistema de Justiça americano: os procuradores são eleitos, e Bragg concorreu pela sigla democrata. O risco de que o caso seja instalado no centro do debate político arrastando todas as questões de interesse público para uma batalha campal é imenso.

Será um teste à integridade de republicanos e democratas. Os primeiros têm o desafio de provar seu compromisso irrestrito com a lei e a ordem; os segundos, de refrear a tentação de solucionar divergências políticas por meios penais, que só as agravarão.

A grande responsabilidade recai sobre os ombros da Justiça. Ninguém está acima da lei. Se há indícios de crime, mesmo um ex-presidente e candidato à presidência deve responder como qualquer cidadão, sejam quais forem as repercussões políticas e sociais. Procuradores e juízes precisam conduzir o caso com técnica e isonomia, sem olhar a capa do processo nem tergiversar sobre os ritos, aplicando a lei sem leniência, para não deixar ninguém impune, mas também sem excesso, para não criar mártires.

O precedente será crucial para os outros casos penais envolvendo Trump – sobre a posse de documentos sigilosos; sobre as alegações de fraude eleitoral que precederam aos ataques do 6 de Janeiro; e a acusação de interferir nos resultados eleitorais da Geórgia. A Justiça deve ser cega. Mas a gritaria em seus ouvidos à direita e à esquerda será ensurdecedora. Sem dúvida, o procurador de Nova York demonstrou coragem. Será decisivo para os destinos de seu país que ele se sobressaia ainda mais nas outras virtudes cardeais: temperança, prudência e, acima de tudo, justiça.

Nem o governo aceita precatórios

O Estado de S. Paulo.

Recusar precatórios como pagamento por concessões de infraestrutura é ampliar insegurança jurídica do País

A operadora espanhola Aena assinou nesta semana o contrato de concessão do aeroporto de Congonhas. No leilão, realizado em agosto do ano passado, a empresa arrematou um bloco de 11 terminais por R$ 2,45 bilhões. A concessionária deve assumir o comando das atividades em até 15 dias, mas uma mudança de entendimento do governo sobre o uso de precatórios para o pagamento da outorga tem tudo para conturbar esse processo.

Com ágio de 231% sobre o valor mínimo do bloco, a Aena fez um lance agressivo para garantir o controle do segundo aeroporto mais movimentado do País. Metade desse valor seria pago com o uso de dívidas da União já reconhecidas pelo Judiciário, possibilidade que foi aberta pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios. Além de permitir ao governo Jair Bolsonaro dar calote nesses títulos, o texto garantiu que esses créditos fossem usados em outras situações, entre as quais quitar a outorga de concessões de infraestrutura.

Como era esperado, a institucionalização do calote movimentou o já agitado mercado secundário de precatórios. Escritórios de advocacia, bancos e fundos de investimento ampliaram o assédio às pessoas físicas, oferecendo aos detentores destes títulos frações de seu valor de face. A regulamentação do uso ampliado dos precatórios foi publicada em dezembro pela Advocacia-Geral da União (AGU); três meses depois, sob nova direção, revogou a portaria, alegando a necessidade de garantir a segurança jurídica da proposta. Em paralelo, a AGU anunciou a criação de um grupo de trabalho para propor uma nova regra em 120 dias.

O ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, disse que era preciso averiguar a liquidez desses pagamentos antes de aceitá-los para quitar a outorga. “Existem precatórios que venceriam este ano. Então, equivale a dinheiro. Agora, existem precatórios que são para serem pagos no ano que vem, no outro ano, no outro ano... A pergunta é: eles devem valer o mesmo preço, devem ter o mesmo valor?”, questionou. “Se a empresa usar um dinheiro que estará disponível daqui a três anos, poderia alguém que não participou da concorrência falar: ‘Se eu soubesse que era assim, eu teria entrado na concorrência’.”

Se houve lacunas na regulamentação das condições de uso de precatórios nos leilões, o governo Lula tem toda a legitimidade para revê-las e aprimorá-las nas licitações futuras. Não deveria, no entanto, mudar regras que valeram para as disputas realizadas no passado. Mudanças como esta certamente serão interpretadas como quebra de contrato, vão conturbar o ambiente de negócios e deverão ampliar a percepção de insegurança jurídica do País.

Com um orçamento apertado e deficitário, o Executivo não tem recursos à disposição para dispensar a participação do setor privado em áreas como a infraestrutura. Mas o pior é o risco reputacional implícito nessa ideia, que seria cômico se não fosse trágico. Afinal, o que dizer de um contumaz devedor que se recusa a aceitar como pagamento títulos emitidos e garantidos por si mesmo?

 

Um comentário:

Fernando Carvalho disse...

O governo precisa fazer duas auditorias a da dívida pública e a dos precatórios. Dois mecanismos de assalto.