O Estado de S. Paulo
Para nos livrar da direita bolsonarista, o governo deve convocar a Nação para cerrar fileira em torno de um projeto de crescimento com equilíbrio fiscal
Imensa pobreza de espírito domina o ambiente
nacional. Questões irrelevantes apresentam-se como preocupações centrais da
cena política. Não surge para discussão um projeto de país, com a indicação de
pontos cardiais a serem enfrentados e das medidas necessárias.
A ausência de líderes condutores das
agremiações políticas torna ainda mais angustiante o sistema de governo
presidencialista, caracterizado pela entrega de benesses para obtenção de
maioria congressual.
Desde Fernando Collor o País vive crises, que redundaram em impeachments ou na instauração de processos criminais, relativos às práticas de corrupção adotadas para assegurar governabilidade, como retratam os episódios do mensalão e do petrolão.
O sistema político não cultiva a lealdade, a
adoção conjunta de plano de governo compartilhado pelo Executivo e Legislativo,
ambos empenhados na execução de programa administrativo. Prevalece contínua
barganha a cada votação, em pescaria no varejo.
Dificultada a compra de apoio político por
via de corrupção em dinheiro, dada a intimidação decorrente dos processos
criminais, instalou-se outro modo de cooptação, já considerado pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) inconstitucional: as emendas do relator-geral do
Orçamento, ora substituídas pela emenda Pix (ver Estadão, 30/6, A8).
Conforme lei cujo projeto foi enviado ao
Congresso por Jair Bolsonaro, o relator-geral do Orçamento decide sobre
liberação de verba solicitada pelos deputados e senadores, sem que fique
registrado o solicitante, havendo apenas a especificação do valor a ser
transferido para determinado município.
Por via do orçamento secreto, compraram
tratores, construíram estradas beneficiando redutos eleitorais de aliados que
restavam ocultos, com suspeita de superfaturamentos. Para o STF, ao julgar as
Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 850, 851, esse tipo
de emendas, que alcançou quase R$ 20 bilhões em 2023, viola os princípios
constitucionais da transparência e da moralidade, por não terem identificação
do proponente e clareza sobre o destinatário. Na emenda Pix se identifica o
solicitante; no entanto, direcionam valores aos municípios sem vinculação a
qualquer finalidade, estando na mira do Tribunal de Contas da União (TCU)
controlar o destino do dinheiro
(https://www.estadao.com.br/tudo-sobre/orcamento-secreto/).
Assim, o Orçamento, enquanto fixação de metas
e prioridades a serem obtidas mediante planejamento estratégico, com respeito
ao equilíbrio fiscal, vai para o espaço, promovendo-se a aplicação de recursos
de forma obscura, desarticulada, apenas para benefício de interesses deste ou
daquele parlamentar.
Além de o Orçamento virar um emaranhado de
gastos desconexos, há a triste constatação de ser uma forma admitida de
corrupção do Legislativo. O governo, sem mensalão, sem petrolão, sem orçamento
secreto, ainda conta com a emenda Pix para formar maioria, além de buscar
governabilidade na entrega de ministérios a membros dos diversos partidos, que
no plano das ideias nada significam, sendo apenas um aglomerado de agentes
políticos. Assim, não é por terem deputado de seu partido à frente de
ministério que os deputados apoiam a pauta do Executivo.
No quadro atual não se pacificou o País nem
se reuniu a classe política e a sociedade civil em torno de um projeto de
nação. O governo está à deriva, sujeito ao poder dos presidentes do
Legislativo. Em especial, o presidente da Câmara dos Deputados, que põe em
votação, em regime de urgência, questões de somenos para o destino do Brasil,
apenas para colocar o presidente nas cordas.
Por exemplo, Arthur Lira provoca a Nação
mandando ao plenário projeto que qualifica o aborto após 22 semanas, mesmo
quando a gravidez é fruto de estupro, como homicídio; vota projeto que
dificulta a saída temporária na execução penal, quebrando com uma política
bem-sucedida de aproximação do preso à vida social; recupera projeto de 2015
que proíbe a colaboração premiada se o réu estiver preso, impedindo o uso dessa
medida como importante instrumento no enfrentamento ao crime organizado.
Pouco importa o significado da medida
prevista, como no caso do aborto de mulher ou menina vítima de estupro, pois os
farisaicos proponentes ignoram que se justifica desde 1940 o aborto da mulher
com gravidez decorrente de estupro para preservar a maternidade. Na hipótese de
gravidez fruto de estupro, dois sentimentos antagônicos assaltam a mulher, que
terá de viver o amor de mãe no filho de quem a violentou, cuja lembrança estará
sempre presente na figura da criança que gera. No sorriso do bebê, o rosto do
estuprador.
Mas isso não importa a Lira e aos seus
obedientes sequazes. Relevante é colocar o governo contra a parede, que precisa
enfrentar a armadilha do presidencialismo somado ao sistema eleitoral
proporcional com multiplicidade de partidos. O governo, para nos livrar da
direita bolsonarista, deve, em tarefa difícil, mas inadiável, convocar a Nação
para cerrar fileira em torno de um projeto de crescimento com equilíbrio
fiscal, visando a sair do atual imobilismo, driblando a contínua extorsão do
Parlamento.
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