Folha de S. Paulo
Às elites cevadas no usufruto patrimonialista
do Estado não importa o que mudou em termos de classes
Em meio à impressão desoladora de que o país
possa estar perdendo o trem da história por decomposição de um Estado cansado,
carente de profunda transformação subjetiva e objetiva, a dinâmica nacional
revela-se animadora. São fatos de superestrutura, despercebidos nas análises de
macroestrutura, eventualmente corretas, mas alheias à rica totalidade do ser
social, que inclui criatividade de formas de vida e de formatividade estética.
Pelo menos é o que acorre à mente depois de assistir ao espetáculo extraordinário de João Bosco e seu quarteto, em que se reaviva o sentimento de brasilidade, invocado por Machado de Assis no século 19. Nada do nacionalismo fechado das autocracias, mas comunhão afetiva com o território. Antes, as performances de Chico, Gil, Caetano e Betânia nos palcos já pareciam ultrapassar a categoria show de entretenimento para se configurarem como convocações à partilha da alegria coletiva que ajuda a definir brasilidade. Ao mesmo tempo, filmes como "Ainda Estou Aqui", "O Agente Secreto" e "Malês" renovam a projeção do cinema nacional.
Há quem considere superficiais abordagens
desse tipo, confrontadas com crise política, penúria econômica e corrosão
social por criminalidade avassaladora. Mas existe também a falência das
palavras e, logo, do pensamento. O conceito de formatividade (Luigi Pareyson,
"Problemas da Estética"), que dilui o rigor da diferença
arte/não-arte e aproxima vida cotidiana de atividade simbólica, sugere que o
acontecimento criativo possa ser uma fresta no enquadramento com que se pensa o
status-quo. Às elites cevadas no usufruto patrimonialista do Estado não importa
o que mudou em termos de classes e de história. Cada vez mais ricas, hoje
cúmplices de religiosos fake nutridos por corrupção e lavagem, aquecem-se com
brasas do pior passado.
Mas o território sempre resistiu ao Estado
pela "verdade" representativa com matriz no sentimento de nação,
politicamente indeterminado, embora estável em termos históricos, culturais e
psicológicos. Uma estabilidade próxima da identidade humana, ou seja, do
complexo vinculativo que situa o indivíduo na intersecção de sua história
individual com a do grupo. No século 19, o influente intelectual francês Ernest
Renan definiu nação como "princípio espiritual".
Entre nós, acontecimentos reais na dinâmica
nacional apontam para brasilidade, a celebração da diversidade, como modo
subjetivo de ação. Ainda sem alcance eleitoral, mas com perspectiva diferente
do uso genocida que o capitalismo atual faz da degradação do Estado: show de
horrores dos Poderes, com o Legislativo na vanguarda da corrupção fisiológica.
Nada disso dissolve a brasilidade, o "saber manejar sonhos e catalisar
energia" (Marina Silva).
A formatividade ascendente (música,
audiovisual, jogos cênicos, periferias criativas, literatura,
intelectualidades afros e indígenas), e não patriotismo bélico, implica
sinergia do espírito do tempo com o princípio espiritual aberto à compreensão,
bloqueada por conceitos anacrônicos, dos acontecimentos proativos. Esses que
são guiados por ideias com lugar próprio. O Estado brasileiro formou-se sem
nação, mas nela vige hoje o que no povo é de fato potente
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