terça-feira, 2 de dezembro de 2008

UMA IDENTIDADE REFORMISTA PARA A ESQUERDA*


Alberto Aggio

Qual o significado, no mundo e no Brasil de hoje, de uma esquerda contemporânea, reformista e transformadora? A identidade da esquerda – algo que, a bem da verdade, sempre esteve em questão – é um tema em permanente debate e permanece aberto ao ingressarmos no século XXI. Como sabemos, o problema é intrincado e merece muito cuidado tanto na aproximação a ele quanto e no seu desenvolvimento. O que se quer aqui é organizar algumas idéias e um conjunto de argumentos com o intuído de contribuir para uma reflexão sem a qual ficará cada vez mais difícil agir no presente e projetar o futuro.

De início podemos anotar que, em sua integralidade, uma esquerda com esse perfil ainda não existe, não está abrigada em nenhum partido político e tampouco se encontra expressa oficialmente em governos ao redor do mundo – ainda que, em alguns países, possa se notar vivamente que um processo rumo a sua construção ganhe um curso expressivo (a despeito de todas as suas dificuldades). Assim, é forçoso reconhecer, antes de mais nada, que a afirmação de uma esquerda com esse perfil configura-se como uma criação política e cultural de grande envergadura. Mas ela não se inicia nem se desenvolve a partir do vazio. Em função da crise que hoje vive a esquerda, há uma necessidade imperiosa de que o percurso dessa criação revele capacidade para superar várias idéias que se afirmaram como identificadoras da esquerda ao longo da história – e que representaram verdadeiros desastres políticos – e, ao mesmo tempo, reafirmar outras tantas, às vezes equivocadamente desprezadas.

Como sabemos, “esquerda” é um conceito contextual e situacional. Ela se define em relação a uma direita e a um centro, ambos histórica e conjunturalmente determinados. Mesmo assim é possível rascunhar algumas referências ou valores da esquerda que permanecem como eixos da sua identidade política e cultural, a saber: (1) a defesa do bem-estar-social ao invés do bem-estar individual; (2) a valorização das responsabilidades coletivas; (3) a extensão da igualdade de oportunidades para todos; (4) a vigência de um Estado forte que seja capaz de corrigir as injustiças sociais por meio de uma ação distributivista da riqueza material produzida pela sociedade; e, por fim,(5) a perspectiva de uma mudança das estruturas de poder por meio da democratização e da participação política[1].

Além desses propósitos de caráter geral, que deram e ainda dão sustentação a uma prática política de esquerda, não há como negar que historicamente a perspectiva de conquista e exercício do poder por parte da esquerda deu a ela um sentido de finalidade que, regra geral, foi semantizado na palavra socialismo. E este, por sua vez, transformou-se no horizonte político e/ou utópico da esquerda. Da mesma forma, não há duvida de que, embora não integralmente identificáveis, os vínculos entre esquerda e socialismo são historicamente incontestáveis. O socialismo foi reconhecidamente um programa de mudança social e um movimento político que mobilizou milhões de pessoas no correr dos séculos XIX e XX.

As três últimas décadas do século XX produziram mudanças de tal ordem na estrutura do mundo que as bases de referência do socialismo ruíram integralmente: a estrutura produtiva foi alterada de maneira drástica, reduzindo muito a necessidade de mão-de-obra; um cenário pós-fordista foi se estabelecendo, ao mesmo tempo em que diminuíam a auto-organização coletiva, a vida associativa e diversas dimensões que davam sustentação ética à cultura política do socialismo. Para a esquerda e para o socialismo talvez essa mudança histórica tenha sido mais decisiva do que a própria queda da URSS e o colapso do chamado “socialismo real”.

Por outro lado, há que se incorporar definitivamente a idéia de que somente uma visão crítica da história do socialismo nos permitirá construir uma nova síntese para se pensar o futuro. Uma atitude profundamente crítica ao passado do socialismo nos ajuda a pensar que devemos, hoje, ir além dele. Não há como não reconhecer o fato de que hoje o socialismo não se configura mais como um programa de ação revolucionária tal como pretendeu ser ou, de fato, foi no correr dos séculos XIX e XX. De um ponto de vista cultural ou intelectual, o socialismo não se sustenta nem mais como uma tradição, hoje isolada e anquilosada no pensamento marxista. Resta a ele encontrar a melhor maneira de colher os frutos de uma necessária e real contaminação cultural que possa lhe alarguar os horizontes e impulsionar a afirmação de um novo reformismo, estratégia que poderá lhe dar um novo sentido histórico.

Entretanto, surpreendentemente, é possível recolher alguns elementos da história do socialismo que apontam para o caminho da sua superação. Por um lado, alguns historiadores do socialismo o criticam fortemente em razão de alguns equívocos em sua trajetória. Para esses estudiosos, o socialismo pecou profundamente na sua concepção de “homem novo”, foi fechado e estreito em relação à questão das mulheres, desconheceu rotundamente o tema da “fraternidade”, etc. Por outro lado, há elementos extremamente virtuosos nessa trajetória, De acordo com Giuseppe Vacca, presidente da Fundação Instituto Gramsci de Roma, os socialistas do inicio do século XX realizaram uma mudança de paradigma nas suas concepções que representou, para a época, uma verdadeira renovação da cultura política do socialismo. Essa mudança foi muitas vezes foi relegada a um segundo plano na interpretação mais geral da história do socialismo. Se refizermos essa trajetória, perceberemos que,

“desde os anos trinta do século XX, a distinção entre “reformistas” e “revolucionários” torna-se anacrônica. (...) a disputa sobre o “fim último” baseava-se num equívoco. A idéia da “superação do capitalismo” nascia da contraposição entre capitalismo e socialismo, que é histórica e conceitualmente infundada. Capitalismo e socialismo referem-se a dois planos diversos da realidade e não são comparáveis: o capitalismo é um modo de produção, o socialismo é um critério de regulação do desenvolvimento econômico, que, portanto, não se contrapõe ao primeiro, mas propõe-se orientá-lo” [2].

O resultado foi que “para superar este falso dilema, foi necessário elaborar o conceito de regulação, e, naturalmente, não estamos falando de elaboração puramente intelectual, mas de experiência histórica concreta”. Para Giuseppe Vacca esse é um marco histórico essencial que deve ser recuperado. É efetivamente o “ato de nascimento do reformismo: a crise dos anos trinta e a invenção de um ‘modo de regulação’ do desenvolvimento alternativo ao do velho liberalismo, que entra em colapso”[3].

Outra idéia a ser superada pela esquerda é a idéia de revolução como fiat da história. Para a esquerda do século XXI realmente se constituir numa esquerda contemporânea, reformista e transformadora é necessário superar a idéia e a representação da revolução como seu eixo e lugar simbólico. Esse pressuposto implica conceber a esquerda a partir de uma definição clara pelo ideário e pela política das reformas. Contudo, esta não é uma formulação muito clara no campo da esquerda real, isto é, no mundo dos homens e mulheres que se identificam com a esquerda. Não é difícil de se observar isso dentro de partidos como o PT, o PCdoB ou mesmo na recente trajetória dos comunistas brasileiros, do PCB para o PPS. A compreensão de que uma esquerda democrática e moderna é uma esquerda reformista é algo ainda não inteiramente assimilado. O sentido do reformismo como o núcleo da política de esquerda no Brasil é muito rarefeito ou praticamente inexistente.

Entendo que é precisamente esse o ponto ou a pista que se deve perseguir: organizarmos um debate a respeito dos sentidos do reformismo, de como construir uma esquerda de reformas no Brasil. Isto porque pensar uma esquerda de reformas na Europa Ocidental já é algo que se pode fazer a partir da revisão de uma história concreta. No Brasil e na América Latina é ainda um problema a ser definido, a ser pensado em inúmeras variáveis, inclusive na superação da condenação ao reformismo que marcou a geração de jovens desde os anos sessenta. Por outro lado, no caso brasileiro, especificamente, é preciso lembrar que até mesmo a palavra reforma foi capturada e se afastou do campo da esquerda, desde o governo de Collor de Melo, no inicio da década de 1990.

De qualquer forma, há algo a se recuperar . Se observarmos bem, em termos de idéias e conduta política, havia alguma coisa na trajetória do PCB que indicava para essa direção. O socialismo sempre foi um referente importante na história do PCB, ainda que a sua prática, especialmente depois de 1958, tenha sido abertamente a de um reformismo político que tinha como ênfases as noções de democratização e desenvolvimento. Contudo, não há espaço para que aqui possamos examinar essa história e tampouco levantar uma série de aspectos que julgamos pertinentes para essa reflexão a partir daquela experiência do PCB. Apenas vamos partir de um ponto que para nós configura-se como emblemático.

É indiscutível que há na história da esquerda brasileira uma parcela ou fração que assumiu para si, desde o final da década de 1970, o tema da democracia e que efetivamente se afastou das idéias dogmáticas que habitavam o ideário mais convencional da esquerda, tanto da “esquerda tradicional” quanto da chamada “nova esquerda”. Sua maior expressão emergiu com a publicação do famoso ensaio de Carlos Nelson Coutinho, A democracia como valor universal (1979), formando-se, a partir daí, um entorno de militantes ativos dessa idéia, que jogava por terra o entendimento de que a democracia não era mais do que uma tática a ser desprezada depois da conquista do poder. Dessa linhagem há que se destacar, sem nenhuma dúvida, a revista Presença, que circulou entre 1983 e 1992. Reconhecidamente, esse movimento fez parte daquilo que Maria Alice Rezende de Carvalho, em texto recente, chamou de “breve história do ‘comunismo democrático’ no Brasil’[4].

Ainda assim, passados alguns anos e depois de inúmeras transformações, no mundo e no Brasil, é forçoso reconhecer que o fim do tempo histórico das revoluções, como método e critério para a mudança histórica, não foi capaz de produzir, entre nós, uma nova fórmula identitária que garantisse, simbólica e politicamente, uma nova expressão para a esquerda. Os fatos do mundo e do Brasil no final do século XX são os responsáveis diretos pelo esgotamento dos dois mais potentes núcleos de identidade da esquerda brasileira, a saber, o núcleo bolchevique/soviético e o núcleo cubano/guerrilheiro. Surpreendentemente, a esquerda pós-1989, que havia surgido pouco antes e ambicionava se configurar como um novo paradigma, fracassou mais rapidamente do que aquela dos modelos anteriores. Contudo, o cenário que ela deixa depois da sua fulgurante trajetória é ainda mais inconsistente: fundada na lógica do mercado e da “escolha racional”, a esquerda representada pelo PT se expressa como uma esquerda de simulacros, nos quais realidade e ilusão se integram em erráticas metamorfoses.

A história e a vida é que colocaram para nós o desafio de superar simultaneamente três dimensões históricas da esquerda brasileira. Mas aqui a história não deve e nem merece ser repetida. Essa não pode ser uma das muitas oportunidades perdidas na trajetória de construção da esquerda e da democracia brasileira. Dentre muitas razões porque o nosso penoso e débil processo de modernização e de democratização somente se consumou, em seus traços conhecidos, devido a não existência, entre nós, de uma esquerda radicalmente democrática e reformista.

Por essa razão, é preciso recapturar o tema das reformas para o campo da esquerda brasileira por meio da elaboração de um programa que concentre suas propostas nas demandas democratizadoras do mundo do trabalho e da vida, condenando tanto o mal Estado ineficiente (independente do seu tamanho) quanto o mercado ególatra e desqualificado. Baseado numa política aberta e em amplo diálogo com a sociedade, é preciso pensar as reformas como mudanças que envolvam a democratização do poder na sociedade brasileira, ou seja, é preciso conectar as reformas com o tema da civilização democrática. É preciso pensar as reformas para além do minimalismo e da lógica de mercado a que elas foram reduzidas na política brasileira recente. Em outras palavras, é preciso resgatá-las como uma perspectiva de realização da modernidade.

O país necessita forjar outra esquerda, com amplas bases sociais, legitimada como reformista e que fale ao coração de milhões. No Brasil, um partido das reformas deve defender a melhoria da vida das pessoas e, em função dessa perspectiva, deve privilegiar a elaboração e implementação de um programa que tenha as características e o sentido de um "reformismo desenvolvimentista". Esse "novo reformismo” deve ser enfim a base de uma nova cultura política para uma esquerda moderna e democrática, o correlato, no discurso político, daquilo que o filosofo Antonio Cícero reivindicou recentemente como “um reformismo profundo e conseqüente”.

[*]O texto foi publicado originalmente na revista Política Democrática nº 22

[1] Ainda que não idênticas tais indicações são expostas em SMITH, Peter H. “Perspectivas de la izquierda latinoamericana” In PÉREZ HERRERO, Pedro (Ed.). La “izquierda” en América Latina. Madrid: Editorial Pablo Iglesias, 2006, p. 291-305.

[2} VACCA, G. “A esquerda italiana e o reformismo no século XX”. Política Democrática, n. 18, p. 111-125, 2007.


[3 ]Idem, ibidem

[4] REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice. “Breve história do ‘comunismo democrático’ no Brasil” In p. 261-281. FERREIRA, J. e AARÃO REIS, D.(org.) Revolução e Democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (As esquerdas no Brasil, v.3).

Um comentário:

Anônimo disse...

O artigo "Uma identidade Reformista de Esquerda", tem, a meu ver, algo que ajuda a começar a pensar sobre os novos padrões filosóficos para uma militância de esquerda contemporânea e democrática. Achei, especialmente promissora, a idéia de desmistificar o socialismo como modo de produção, que de fato nunca foi, mas como marco regulatório de relações sociais, de outra visão do Estado.
MUito legal! pensamentos como o de Alberto Aggio, nos dão a esperança, a perspectiva mesmo mais objetiva, de que mediados pela construção acadêmica e por outra inserção social daqueles que pensam e lutam por transformações sociais,poderemos logo logo, definir parâmetros referenciais mais afeiçoados à idéia da sobrevivência da esquerda...