A América Latina vive hoje, por determinadas razões, a experiência do neopopulismo
Os anos que vivi em países latino-americanos levaram-me a perceber que entre eles e o Brasil há importantes diferenças.
Isso não significa que eles, por sua vez, sejam todos iguais; não obstante, há, entre eles, traços que os distinguem de nós.
Não é que sejamos melhores ou piores que eles, mas há diferença. Já me referi a isso aqui, faz algum tempo, mas agora essa observação me volta à lembrança, ao saber das medidas francamente antidemocráticas tomadas por Cristina Kirchner, recentemente reeleita presidente da Argentina. E foi na Argentina que passei a maior parte de meu exílio.
Mais precisamente em Buenos Aires, cidade que adoro e que, apesar dos pesares, muito ajudou a enfrentar a barra pesada daqueles anos.
Cheguei ali no mesmo dia em que morrera o presidente Perón e, por isso, tive que aturar, durante três dias, a exposição do velório dele, ininterruptamente exibido na televisão.
Ali estava, enfim, morto, o homem que governara a Argentina por duas vezes e que, em seu primeiro governo, transformara sua mulher, Evita, numa mitificada mãe dos pobres e que, morta, teve seu cadáver posto em exposição na sede da CGT até ser ele apeado do poder pelos militares.
Levou consigo o cadáver dela para a Espanha e o instalou na casa onde passou a viver com a nova mulher, Isabelita. Esta penteava os cabelos da morta todos os dias, conforme a vontade do marido.
De volta à Argentina, fez de Isabelita sua vice, de modo que, morto ele, assumiu ela o governo do país, embora nada entendesse daquilo, cantora de cabaré que havia sido. Não faz muito tempo, seu herdeiro político, Néstor Kirchner, fez de Cristina também sua vice; assim, morto ele, passou ela a governar o país.
País estranho é a Argentina. Se é verdade que também no Brasil tivemos a ditadura de Getúlio Vargas, igualmente travestido de pai dos pobres, jamais adquiriu a aura mistificante que até hoje mantém o peronismo como força política atuante no país.
Lembro que, quando Isabelita assumiu o governo, sem qualquer qualificação para isso, a CGT difundiu pelo país um cartaz em que ela aparecia vestida como Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, tendo ao alto, de um lado, o rosto de Perón, e do outro, o de Evita, lançando luz sobre ela, e embaixo a seguinte frase: "Se sente, se sente, Perón e Evita estão presentes".
Ninguém teria coragem de fazer coisa semelhante no Brasil, mas na Argentina pode, e tanto pode isso como pode sequestrar do túmulo o cadáver de um general, levado para a Itália por razões políticas; e também pode, no dia da chegada de Perón, em 1973, peronistas enforcarem peronistas sob o palanque em que discursava o líder recém-chegado.
Se soube de tudo isso com perplexidade, igualmente perplexo leio agora as notícias, que me chegam de lá, após a vitória eleitoral de Cristina Kirchner.
Ao que tudo indica, estamos diante de uma personalidade surpreendente que, ao contrário de Isabelita, que não sabia a que viera, sabe muito bem o que pretende e está disposta a levar suas pretensões às últimas consequências.
A América Latina vive hoje, por determinadas razões, a experiência do neopopulismo, que tem como principal protagonista o venezuelano Hugo Chávez.
É um regime que se vale da desigualdade social para, com medidas assistencialistas, impor-se diante do povo como seu salvador. Lula seguiu o mesmo caminho, mas, como o Brasil é diferente, não conseguiu o terceiro mandato.
A solução foi eleger Dilma para um mandato tampão.
Porque o neopopulismo se alimenta de uma permanente manipulação do setores mais pobres da população, o seu principal adversário é a imprensa, que traz a público informações e críticas, que desagradam o regime.
Por isso mesmo, Chávez faz o que pode para calar os jornalistas, enquanto Lula e sua turma tentaram criar aqui um órgão para controlar os jornais.
Não o conseguiram, mas Cristina, na Argentina, talvez o consiga, já que acaba de aprovar uma lei que põe sob controle do Estado a produção de papel de imprensa. O jornal que insistir em criticar seu governo, deixará de circular.
Temo pelo que possa acontecer à Argentina, nas mãos de uma presidente embriagada pelo poder.
FONTE: ILUSTRADA/FOLHA DE S. PAULO
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