domingo, 16 de dezembro de 2012

Absolvição sumária - Roberto Romano

Evitar a responsabilização de autoridades faz com que o Brasil se assemelhe a um Estado absolutista

Em artigo jocoso, "Apenasmente" Cajazeiras, o professor Eugênio Bucci analisou recentemente as acusações contra Luis Inácio da Silva. Ele compara o político popular ao personagem da novela O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu. Boa dose de injustiça ressalta do texto, mas vários elementos devem nele ser levados em conta, como a crítica dos que eximem a priori o ex-presidente de toda responsabilidade pelos malfeitos cometidos em seu governo. Lula, escreve Bucci, "teria tudo para enfrentar com grandeza as denúncias que dele se aproximam, sobretudo as mais recentes. Em vez disso, prefere se refugiar no mito de si próprio, um mito que, convenhamos, além de precocemente instalado, é oco". Discordo da última frase e me apoio no antropólogo Malinowski: "O mito é um subproduto constante de uma fé viva que precisa de milagres, de um estado sociológico que tem necessidade de precedentes e de um código moral que exige uma sanção". A taumaturgia cortesã se opõe à racionalidade da ordem política e jurídica. Não existe mito oco ou inocente.

Dois pilares, na república democrática, garantem o direito e a liberdade. O primeiro é a transparência dos atos políticos. Tal princípio é reforçado pela norma segundo a qual em todo processo os fatos devem ser descritos à exaustão (quid facti), sem os obstáculos das seitas, partidos, governantes poderosos. Os tribunais e seus integrantes (polícia, ministério público, advogados de defesa) precisam apurar os atos, os documentos, os testemunhos para definir uma narrativa sólida, contrária ou favorável ao acusado, do humilde cidadão ao poderoso. Outro item é a busca de situar os fatos sob a lei que os sanciona positiva ou negativamente (quid juris). Na Constituição brasileira estão previstos os casos em que governantes, atuais ou pretéritos, devem responder perante a nação. Nenhum parágrafo afirma que um líder, por sua popularidade ou grandeza, deve escapar da pesquisa dos fatos e das normas jurídicas. A Constituição, no entanto, não é espelho fiel do que ocorre na política nacional. Falar no Brasil em responsabilização de grandes líderes é anátema que faz surgir de imediato, nos lábios de quem manda na esquerda e direita, a ladainha sobre a intangibilidade do acusado, sua condição de pessoa acima das outras. Semelhante traço oligárquico impede a soberania popular, gera os tutores do País.

Enquanto não existir responsabilização das "autoridades", o Brasil será um anacrônico e virulento Estado absolutista no qual o soberano jamais é o povo e sim o ocupante do trono e seus cortesãos. O gestor e o político não podem ter contra si nenhuma acusação ou dúvida. É o que manda a fórmula restritiva "ilibada reputação" (illibatus, no latim bem conhecido pelos nossos poderosos significa "íntegro", "completo"). Quando um prócer de qualquer partido ou ideologia sofre acusações que chegam à sociedade ele deixa - mesmo que inocente - de ser "ilibado", condição a que retorna se a Justiça assim o decidir. Quem paga impostos ou aceita obedecer às leis sob autoridades espera que os dirigentes sejam ilibados. Para manter um cargo é preciso que o funcionário, mesmo na chefia do governo, seja responsável e responsabilizado. Essa doutrina foi compendiada por John Milton e acolhida nas democracias: "Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra". (The Tenure of Kings and Magistrates).

É evidente que a imprensa não pode ser instância julgadora. Ela, não raro, abusa ao veicular acusações. Mas é também evidente que os julgamentos podem deixar de existir se atos que atentem contra o Estado e a sociedade não forem trazidos ao eleitor. Quando um político é acusado de negligência ou crime, para manter a fé pública o correto é investigar as denúncias até que prova cabal ou juízo as dissolvam. O político representa o Estado e deve ser íntegro. Caso contrário, desaparece a base legitimadora do poder que se regula pela democracia e se justifica pelo direito.

No Brasil, o poder público está sempre em crise, o que evidencia o frankenstein jurídico e institucional do nosso Estado. Apesar de sinais que anunciam melhorias na ordem política, como a lei de improbidade administrativa, a lei da ficha limpa, a lei de acesso à informação e outras, a fé pública é frágil entre nós. Combater a descrença da cidadania exige apurações isentas e responsáveis, sem truques afetivos e propaganda enganosa. A cada novo dia é preciso mostrar, por atos e palavras, que existe compromisso ético. Sem tais atitudes públicas e particulares, a governabilidade é impossível. Estado desprovido de fé pública não pode ser um regime livre e responsável.

A governabilidade tem como pressuposto a obediência, pela cidadania soberana, das leis elaboradas no Parlamento e destinadas à execução pelo governo. Se os eleitores não podem confiar na abrangência universal das referidas normas, se existe suspeita de que elas não valem para todos e para cada um dos cidadãos, se existem pessoas acima da lei, some a governabilidade. Bismarck dizia que duas coisas o cidadão ignora porque, caso contrário, jamais aceitaria: o modo pelo qual são produzidas as salsichas e as leis. Ele usa a figura médica antiga que une o poder político ao "regime". As leis alimentam o corpo político e devem ser controladas pelo juízo público. Este último requer ética e decoro dos políticos, estejam eles no poder ou fora dele. Bismarck foi contrário à democracia, inimigo da soberania popular. Se aplicarmos seu exemplo, no entanto, as nossas salsichas e as leis não passariam nunca pelo controle das secretarias de abastecimento. Nossos políticos, que se julgam acima do povo, provam apenas que elas surgem com o prazo vencido, apodreceram porque supõem o absolutismo ou a oligarquia. Não valem para uma república democrática.

Roberto Romano é filósofo, professor de Ética e Filosofia na Unicamp e autor, entre outros livros, de O caldeirão de medeia (Perspectiva)

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

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