quinta-feira, 30 de junho de 2016

A cultura da boca-livre – Editorial / O Estado de S. Paulo

O escândalo do desvio de recursos públicos para atividades que nada têm a ver com o estímulo à cultura, conforme apurou a Operação Boca Livre da Polícia Federal (PF), tende a radicalizar a discussão em torno da chamada Lei Rouanet, que gera controvérsia desde que foi aprovada, em dezembro de 1991. Não é para menos: afinal, quando até uma festa de casamento é bancada com recursos oriundos de renúncia fiscal, é porque alguma coisa está muito errada.

A operação da PF desmontou um esquema que funcionava desde 2001 e fraudava o processo por meio do qual o Ministério da Cultura (MinC) libera o benefício a quem o solicita. Segundo as investigações, os operadores do esquema apresentaram projetos culturais falsos e dessa forma obtiveram cerca de R$ 180 milhões. A tal festa de casamento, por exemplo, recebeu os recursos porque foi disfarçada de show.

Está claro que essa quadrilha pôde agir por 15 anos porque a fiscalização é frouxa, e talvez seja esse o maior problema da Lei Rouanet. O benefício tem sido concedido a projetos que jamais poderiam ser enquadrados na categoria de “fomento à cultura”.


O estímulo oficial à criação artística e ao desenvolvimento cultural, seja por meio de recursos advindos de renúncia fiscal, seja por investimentos diretos do governo, é indispensável como instrumento auxiliar para, entre outros objetivos, a formação da identidade cultural de um povo. A Lei Rouanet, ao longo de seus 25 anos de existência, tem cumprido esse objetivo. Apresenta, no entanto, graves distorções que precisam ser corrigidas, inclusive aquelas que dão margem a fraudes.

Para que venha a se beneficiar da Lei Rouanet é preciso que um produtor cultural submeta um projeto detalhado ao MinC, informando o montante de recursos financeiros que pleiteia. Uma comissão de técnicos analisa a proposta tanto do ponto de vista técnico quanto de seus objetivos culturais e aprova, ou não, a captação pelo pleiteante, junto às empresas privadas, da verba aprovada. Esse dinheiro é descontado pelo patrocinador de seu Imposto de Renda devido como pessoa jurídica.

Quando, em 2009, tentava negociar com o Congresso a reforma da Lei Rouanet, o então ministro da Cultura, Juca Ferreira, argumentava que a maior distorção do sistema estava na captação dos recursos junto à iniciativa privada, cujos departamentos de marketing tinham o poder de definir os projetos de sua preferência. Como consequência, dizia então o MinC, cerca de 80% dos recursos captados pelos projetos aprovados beneficiavam o Sudeste. É verdade, consequência do fato óbvio de que é em Regiões Metropolitanas como as de São Paulo e Rio de Janeiro que se concentra a maior parte do público-alvo das empresas. Seus departamentos de marketing, portanto, fazem o que deles se espera e pouco têm a ver com a difusão da cultura.

Mas é verdade também – e esse é o fulcro da questão – que os projetos que as empresas aceitam patrocinar para se beneficiarem da renúncia fiscal são aqueles, e somente aqueles, que o MinC aprova. A distorção, portanto, não está na captação, mas na aprovação dos projetos.

É claro que não faz sentido patrocinar com recursos públicos espetáculos de artistas consagrados que por definição podem contar com a bilheteria para cobrir seus custos e remunerar seu talento. É claro também que em momentos de crise como o que vivemos é muito difícil, até para celebridades, contar apenas com bilheteria.

Mas, quando se trata de recursos públicos, é preciso estabelecer prioridades. A questão central, então, é que é indispensável o aporte de recursos públicos para a criação artístico-cultural, mas esses recursos devem se concentrar no fomento da atividade criativa – o que implica prioritariamente pesquisa, inovação e qualificação profissional – e não no espetáculo, o que significa a submissão de um programa de governo no campo cultural ao efeito perverso da lógica do mercado. Para não falar da falta de fiscalização, que beneficia as escandalosas bocas-livres.

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