- O Globo
“Hoje é sábado, 13 de março. São 11 horas da manhã. Acabei de falar com o Lula, uma conversa telefônica muito boa, muito tranquila. Eu liguei para ele”. Era 1999 e quem falava ao gravador era o então presidente Fernando Henrique. O país estava no meio de uma aguda crise após a desvalorização abrupta do real e o PT estava na campanha “Fora FHC”. Mas os dois tiveram uma conversa boa e tranquila.
Dias antes, Fernando Henrique havia recebido no Palácio a visita do então governador do Acre Jorge Viana e dos senadores Marina Silva e Tião Viana. “Excelentes pessoas. Conversa muito boa. Eles querem uma aproximação minha com setores de esquerda. Eles estão dispostos a isso. Foi muito bom, é de gente assim que o Brasil precisa.”
Esses e outros trechos do terceiro volume do “Diários da Presidência”, que abrange os anos de 1999 e 2000, lançado pela Companhia das Letras, são salpicados de flagrantes de que, apesar do clima de disputa política, era possível o diálogo entre os dois grupos. Os dois se conheceram no meio da ditadura, numa vez em que o Lula foi ao Cebrap acompanhando o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Perguntei ao ex-presidente, em bate-papo na Livraria da Travessa, onde foi que o país havia perdido a capacidade de diálogo e caminhado na direção dessa polarização radicalizada.
— Foi quando o PT passou a achar que o PSDB era o inimigo principal — respondeu.
Na época, José Dirceu disse que Fernando Henrique era velho e devia cuidar dos netos.
Nas ruas, crescia a campanha pelo impeachment do presidente. A sensação do país era de que fora traído, porque a desvalorização, negada durante a campanha, fora feita logo depois da nova posse. No dia 13 de janeiro, o governo anunciou a saída de Gustavo Franco e a nomeação de Chico Lopes para o Banco Central, que iniciou sua tentativa de mudança controlada do câmbio. O mercado forçou a flutuação, que foi aceita oficialmente no dia 15.
No dia 29, houve uma corrida bancária. Boatos de que haveria um confisco tomaram o país. Houve um esforço desesperado, felizmente bem sucedido, de estabilizar a economia. O Banco Central passou a ser presidido por Armínio Fraga, que introduziu as metas de inflação e administrou o câmbio flutuante. Na Fazenda, o ministro Pedro Malan reforçou o ajuste fiscal. Com esse tripé, o país ficou de novo firme e segurou a moeda. Mas houve dias de desespero. “Claro que minha preocupação é imensa, por estar vendo rolar por terra abaixo toda a política de estabilização que levamos anos para implementar”, falou FH ao seu gravador. As ruas não gritavam sem motivo. O risco era imenso. “Acho que fizemos uma violência e nossa confiança diminuiu muito.”
Olhando para trás, o ex-presidente acha que devia ter feito a desvalorização em 1997. E disse que não enganou o eleitorado, porque mudança do câmbio é algo que não se comunica antecipadamente. Os acontecimentos dramáticos do começo de 1999 remetem ao início de 2015, quando a ex-presidente Dilma Rousseff passou a admitir a existência da crise, e a inflação, reprimida artificialmente, subiu fortemente e foi aos dois dígitos. O PIB despencou, na mais forte recessão da nossa história. Em 1999, durante o ano, a crise se acalmou, a inflação foi contida em um dígito e o país teve apenas uma leve recessão. O pedido de impeachment de FHC foi arquivado no Congresso.
Na conversa na Travessa, cercado de livros, FH afirmou que, apesar de tudo, ele ainda acha que a reeleição deve continuar, mas que poderia haver algum sistema de recall. Uma das pessoas da plateia perguntou sobre como ele lidava com os adversários políticos. Ele disse que os inimigos não eram o PT, mas pessoas da própria coalizão que “achavam que eu estava derrotado quando a popularidade caiu. Eles vieram como piranhas.”
Durante as duas administrações, apesar da forte oposição, houve em vários momentos pontes entre o PT e o PSDB. Houve algumas iniciativas, como aquele encontro de Fernando Henrique com os irmãos Viana e Marina, para formar uma aliança à esquerda. Com tudo o que ocorreu desde então, no meio dos ásperos tempos que vivemos hoje, diante da assustadora incerteza que temos pela frente, esses ecos de diálogo no passado parecem irreais. E dão saudade do futuro que não houve.
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