segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Reage Rio: Maria Alice de Carvalho, entrevista

Descrédito nas instituições cria ‘salvadores da pátria’

Para historiadora, relação entre Legislativo e Executivo representa só os interesses de políticos e setores da burocracia. A vida como ela é ficou de fora

Luciana Nunes Leal | O Globo

Professora do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUCRio, a historiadora e socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho afirma que a investigação, o julgamento e a punição dos casos de corrupção são "a ideia-mãe da democracia", mas não devem levar a um descrédito nas instituições que abra espaço para "salvadores da pátria". Para Maria Alice, a propalada parceria entre União, estado e município que vigorou no Rio nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Sérgio Cabral deveria ter gerado desconfiança desde o início. Não havia "nenhuma voz dissonante", lembra.

• De todos os episódios revelados pelas investigações de corrupção no Rio de Janeiro, qual a senhora considera mais simbólico?

Não sei se há um fato mais específico. Estamos vivendo no país todo uma crise política, e a corrupção tem a ver com essa crise. Não sei se dá para mapear limites federativos dessa corrupção. Há evidência de que ela é sistêmica, extrapola os limites nacionais e se manifesta de forma distinta na cidade e na Região Metropolitana do Rio, em São Paulo, Alagoas. Cada lugar tem sua história.

• O que marca a política no Rio de Janeiro?

A transferência da capital para Brasília é um marco da alteração da vida política, cultural e institucional do país sem qualquer compensação que pudesse reerguer a economia e o prestígio regionais. O que o Rio apresentou de interessante, e o golpe de 1964 eliminou, foi o início de uma organização popular autônoma nos anos de 1950, com movimentos associativos bastante consistentes. Às vésperas da Constituinte de 1988, essa malha associativa estava arrasada, mas a cidade não estava inerte. Os constituintes receberam demandas e sugestões de associações e movimentos sociais. Havia um nexo entre política e organização social e popular, e isso foi a grande novidade da redemocratização brasileira.

• O que interrompeu esse processo?

Fomos atropelados pela dimensão do tráfico de drogas e pelos nexos que ele estabeleceu na cidade, corrompendo a segurança e a política locais. Hoje, tudo isso está muito agravado pelo armamento pesado, um componente mais do que pernicioso na vida da cidade, que produz o terror nas ruas e multiplica a violência. Há uma dificuldade da vida social do Rio, e das favelas principalmente, em estabelecer limites para os desmandos de “mandões” e do próprio governo.

• O cenário tem se agravado?

Nas últimas décadas, o cotidiano, a vida como ela é, ficou de fora do arranjo político entre o Executivo e o Legislativo. É uma política de representação que não representa a sociedade, só os próprios interesses de políticos e de segmentos da burocracia do Estado, construída à base de benefícios mútuos e barganhas, e não em torno do compromisso com o bem público. Esse modelo entrou em colapso. E a sociedade só não explodiu porque, para grande parte dela, a política não importa. É lamentável de dizer, porque não há democracia que sobreviva à apatia dos cidadãos, mas as pessoas têm tentado levar suas vidas, alimentar seus filhos, garantir a escola, a saúde, sem pensar que a política pode facilitar ou dificultar nossa vida. A política enche barriga, sim: dependendo de em quem se vota, as liberdades e a justiça social são mais ou menos contempladas. Isso se perdeu, a política se tornou “coisa de políticos”. A corrupção deslegitima a democracia porque corrói os mecanismos pelo quais as pessoas entendem os limites às suas práticas. É como se vivêssemos em permanente e profundo descontrole, e essa sensação é ruim para a democracia, pois ativa as fantasias exclusivas de ordem e punição.

• Como o Rio passou, em tão pouco tempo, de símbolo da parceria entre União, estado e município, com os ex-presidentes Lula e Dilma, a síntese do colapso e do abandono?

Essa noção de unidade deveria ter gerado desconfiança. Imagine esses três agentes — presidente, governador e prefeito — sem voz dissonante. Era como se a única saída para nosso desenvolvimento fossem as obras, a Olimpíada, a articulação com empresas, com empreiteiras para construir um novo Rio. E a política, inerte. Não havia oposição e, portanto, discutiu-se muito pouco acerca do que parecia ser um grande consenso. A política exige limites. A democracia é essa tensão entre o direito e o poder.

• O Ministério Público e a Justiça apontam que, no Rio, talvez tenha havido o esquema mais duradouro e organizado de corrupção.

A ideia de tornar mais transparente esses processos, de revelar a corrupção, é uma medida salutar. Mas a transparência é um procedimento, não um valor em si. Tem que ser perseguida, e há regras para tal. Essa sede de revelação do sistema de enriquecimento ilícito e de descompromisso com a coisa pública propicia o surgimento de uma histeria ética que pode favorecer a desmoralização das instituições e, no limite, a desinstitucionalização da política. Passa uma noção de que tudo está tão deteriorado que não há o que fazer. A ideia de revelar, de arrolar os casos a serem investigados, julgados e eventualmente punidos, é uma ideia-mãe da democracia. Mas viver alimentando a imaginação social com listas de culpados, de testemunhas, fazer da agenda brasileira apenas essa caça aos corruptos empobrece a natureza da política, os valores em torno dos quais estamos alinhados. Essa apreciação da política como lugar onde todos os vícios se apresentam e onde se encontram todos os malfeitores é grave, acaba criando uma descrença, uma relação de recusa da sociedade ao mundo da democracia e suas instituições.

• Os movimentos que pregam o voto em pessoas de fora da política servem à renovação?

Não sei se são “de fora” da política, porque, se vão concorrer, passam a ser de dentro. É um truque, não convence. A sociedade espera uma renovação, mas demora. Não vamos achar uma boa política, um bom político, imediatamente. Temos que fortalecer e reinventar as formas de associação que produzem coesão na base da sociedade. No mundo das favelas ou nos bairros populares da Zona Norte, há uma força associativa, a despeito do tráfico, que é cada vez mais importante. Produção cultural intensa, a chegada dessa juventude negra e pobre, moradora da favela, à universidade; uma voz autoral sobre aquele mundo — o nosso mundo — que não é mais apenas a dos acadêmicos do asfalto. Assim, vamos reconstruindo uma sociabilidade mais amena e uma política participativa e democrática. Não vai ter solução mágica, a democracia é um processo de construção permanente.

• As eleições de 2018 já vão mostrar sinais de mudança?

O caminho aponta para a novidade. Por enquanto, falamos de procedimentos: transparência, punição. Em breve, será preciso recuperar valores como compromisso público, uma ética social menos individualista, uma experiência associativa mais densa. Não dá para dizer “está tudo perdido”, pois isso pode fazer com que líderes oportunistas e carismáticos apareçam como salvadores da pátria, desprezando instituições e reeditando um padrão de governo que não interessa.

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