segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Gustavo Loyola: Dom Sebastião não virá

- Valor Econômico

A cegueira de parte da classe política vai custar caro à sociedade brasileira mais cedo do que se imagina

O recém-divulgado relatório do Banco Mundial analisando o gasto público no Brasil trouxe o diagnóstico de uma grave doença que cada vez mais incapacita o país e o condena à estagnação econômica. Há muito tempo os sintomas do problema estão evidentes e muitos especialistas brasileiros já vinham alertando para a deterioração da qualidade da política fiscal no país. Porém, a citada análise é particularmente útil e oportuna, pois sintetiza de forma competente o rol das principais mazelas do setor público brasileiro e aponta caminhos para que o país readquira o equilíbrio das contas públicas e tenha um gasto público mais eficiente e menos regressivo.

De fato, os gastos públicos vêm crescendo de forma continuada nos últimos anos, provocando déficits nominais próximos a 10% do PIB e o aumento acelerado da dívida pública como proporção do PIB. Esse indicador, em apenas cinco anos, pulou de 51% em 2012 para um percentual em torno 75% no final do corrente ano. Na hipótese de sucesso na tramitação da reforma da previdência e manutenção de severa austeridade fiscal, seria possível respeitar o teto do crescimento de gastos nos próximos anos, mas ainda assim a dívida pública chegaria a mais de 85% do PIB em 2021, quando só então poderia começar a cair lentamente.


Porém isso não será tarefa fácil. Como aponta o citado relatório, a observância do teto de gastos vai exigir, na próxima década, a redução dos gastos de 0,6% do PIB em relação à tendência atual. A reforma previdenciária é a medida que mais pode contribuir para tal objetivo, mas não é condição suficiente. Por exemplo, uma reforma da previdência cuja economia de gastos equivale a 60% da proposta original fará cair o crescimento da despesa previdenciária em termos reais dos atuais 5% para 3,5% ao ano, o que ainda é insustentável no médio prazo. Por isso, outras medidas terão que ser implantadas para reduzir a rigidez do gasto público, como salientou o Banco Mundial.

Ocorre que a aprovação da reforma da previdência, mesmo que em sua versão "minimalista", fica cada vez mais distante. Não há suficiente apoio no Congresso, inclusive, pasmem-se, na bancada do PSDB, partido que parece ter perdido definitivamente o rumo. Se a hipótese de não aprovação da previdência se confirmar nas próximas semanas, é quase certo que o teto de gastos não poderá ser cumprido a partir de 2019, com consequências que poderão ser desastrosas para o país.

O fracasso na reforma previdenciária será sentido imediatamente na economia do país. As expectativas vão se deteriorar rapidamente e, num ano eleitoral já cheio de incertezas, o prêmio de risco do país deve se elevar, com a moeda brasileira se desvalorizando de modo acentuado. Neste caso, a recuperação da economia em 2018 será afetada pelo menor volume de investimentos e também pela retração dos consumidores em face de um cenário de maior risco.

Por outro lado, na campanha eleitoral do ano que vem, é muito pouco provável que os candidatos mais competitivos façam promessas críveis de ajustes estruturais caso eleitos. Do PT, por óbvio, não se deve esperar isso, tendo em vista o equivocado e persistente diagnóstico do partido em relação à questão fiscal que, aliás, se materializou na desastrada "nova matriz macroeconômica" patrocinada pela dupla Dilma-Mantega. O PSDB, por sua vez, está perdendo o restante de sua credibilidade como partido das reformas, tendo caído na vala comum do populismo, pelo menos no que tange à sua posição face à crise da previdência. Com poucas exceções, as demais candidaturas que estão até o momento sendo cogitadas também não trazem qualquer conforto quanto à prática de uma política econômica responsável e de viés reformista. Ao contrário, o populismo parece ser quase a regra geral.

Desse modo, a cegueira deliberada de parte da classe política que não quer encarar hoje a realidade da imperiosa necessidade da reforma previdenciária vai custar caro à sociedade brasileira mais cedo do que se imagina.

Contudo, os efeitos da procrastinação da reforma da previdência iriam muito além da turbulência macroeconômica de curto prazo. As dificuldades no cumprimento das metas fiscais, inclusive do teto de gastos, levarão ao colapso do investimento público em infraestrutura e a deterioração dos serviços prestados pelo Estado, nos campos da saúde, educação, segurança, entre outros. A situação vivida hoje pelo governo do Rio de Janeiro se repetiria em nível federal e os ônus crescentes da previdência dos servidores estaduais fariam a crise fiscal se alastrar em pouco tempo pela maioria das unidades da federação.

Paradoxalmente, até o momento, os mercados estão em relativa calmaria. Os agentes econômicos parecem estar esperando um Dom Sebastião que voltará da África para salvar o Brasil e levá-lo a novas conquistas. Porém, como sabem os portugueses, a volta de D. Sebastião é apenas uma lenda. A reversão do desastre fiscal anunciado depende de pessoas de carne e osso que, infelizmente, parecem não estar disponíveis em número suficiente no atual mundo político brasileiro.

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Gustavo Loyola, doutor em economia pela EPGE/FGV, foi presidente do Banco Central

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