‘Três Anos de Desastres Naturais’ — foi assim
que, cinicamente, o Estado maoísta batizou um dos maiores ciclos de fome
registrados na história. Na China, entre 1959 e 1962, algo entre 15 e 55
milhões de pessoas morreram de fome. Os “Três Anos de Dificuldade”, na
terminologia reinventada em 1981, configuraram o solitário período de declínio
populacional desde a fundação da República Popular da China, em 1949. Agora, um
tanto ressabiado, o regime chinês prepara-se para anunciar que o declínio
populacional tornou-se o novo normal.
O Brasil, sob Bolsonaro, já não consegue realizar censo. A China completou em dezembro seu censo decenal — e descobriu, com alguma surpresa, que sua população não atingiu 1,4 bilhão. Na Grande Fome, a taxa de fertilidade desabou bruscamente de 6,4 filhos por mulher, em 1957, para 3,3, em 1961, antes de se recuperar. Hoje, é de 1,7, pouco menor que a dos EUA (1,8) e aproximando-se da taxa da União Europeia (1,55). A China é o singular exemplo histórico de país que envelheceu antes de enriquecer.
Excluindo
eventos extremos, como a Grande Fome, as curvas de taxas de fertilidade
comportam-se mais ou menos como imagens invertidas das curvas do PIB per
capita. As famílias têm menos filhos à medida que aumentam os custos de criação
e caem os incentivos para uniões precoces. Na China, porém, a regra foi rompida
pela ação de um regime totalitário. O governo introduziu a política de dois
filhos por casal em 1970 e, uma década depois, estabeleceu o objetivo do filho
único. O impacto de longo prazo do antinatalismo radical evidencia-se na
implosão demográfica em curso.
A
taxa de fertilidade recuou de 5,7, em 1970, para, 1,6 em 2000. A curiosa
pirâmide etária chinesa exibe uma contração acentuada na faixa de 35 a 44 anos:
o vazio deixado pelo forte recuo da natalidade no decênio iniciado em 1975. As
sanções destinadas a impor o filho único foram relaxadas desde meados da década
de 1980, e, a partir de 2015, o regime passou a estimular as famílias a ter
dois filhos. Pouco adiantou: o gênio do controle reprodutivo não voltará à
garrafa.
Na
Índia, a taxa de fertilidade ainda gira em torno de 2,2. Há pouco, projetava-se
que a população indiana se tornaria a maior do mundo em 2026. Tudo indica que a
ultrapassagem ocorrerá antes, mas isso é quase irrelevante. Por outro lado, os
impactos da implosão demográfica chinesa não devem ser subestimados — e
interessam ao mundo inteiro.
A
expansão econômica da China baseou-se, desde 1980, na agregação de massas de
trabalhadores ao sistema industrial. O envelhecimento demográfico já se tornou
um fator limitante, provocando aumento no custo da força de trabalho. O PIB
chinês, que crescia a taxas médias superiores a 10% entre 1992 e a crise
financeira global de 2010, acomodou-se em torno de 6% às vésperas da pandemia.
A China atual só pode seguir crescendo pela via de uma contínua escalada
tecnológica. Isso exige conservar a rede de intercâmbios que a prende à
economia global, um imperativo com óbvias repercussões geopolíticas.
A
taxa de fertilidade da China é quase igual à dos EUA, mas seu PIB per capita situa-se
anos-luz atrás (US$ 10,2 mil, contra US$ 65,3 mil). A idade média de chineses e
americanos é quase igual (38,4 anos). A política antinatalista maoísta eliminou
as antigas famílias numerosas que asseguravam a sobrevivência dos idosos. As
reformas de mercado pós-maoístas tiraram dos trabalhadores urbanos as garantias
de emprego, moradia e saúde chamadas de “tigela de arroz de ferro”. A Lei de
Seguro Social, de 2011, criou o atual sistema previdenciário nacional, uma
ficção burocrática ignorada pela maior parte das empresas.
A crise saltou ao palco político em 2014, quando os 40 mil operários de uma fábrica em Cantão descobriram que seus direitos previdenciários eram sonegados — e engajaram-se numa inédita greve de duas semanas, que iluminou os contornos do capitalismo selvagem chinês. EUA, Europa e Japão enfrentam o desafio de oferecer previdência a suas vastas populações idosas. A China encara um dilema similar muito antes de enriquecer.
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