Valor Econômico
No Brasil, as transições sempre acontecem
para impedir que o passado fique no passado
“Nós
defendemos o armamento para o cidadão de bem, porque entendemos que a arma de
fogo, além de uma segurança pessoal para as a famílias, ela também é a
segurança para a nossa soberania nacional e a garantia de que a nossa
democracia será preservada”. Assim falou Bolsonaro no dia 17 de maio de 2022.
“Cidadão de bem” é a expressão que denuncia
as desavenças de Bolsonaro com os princípios que regem a convivência social ao
abrigo do Estado Moderno. As formações políticas que se consolidaram desde a
Era do Iluminismo e da Revolução Francesa não admitem aos cidadãos invocar a
própria santidade, honestidade ou boa consciência para contestar a
universalidade da lei ou os procedimentos legais.
Seria uma insanidade, no mundo moderno,
substituir os preceitos e a força da lei escrita pela presunção de bondade
intrínseca de um grupo social ou de um agrupamento de indivíduos.
Não apenas aqui, neste Brasil de tantos
atrasos e tantas ignorâncias, mas no mundo inteiro a crise de legitimação do
Estado vem suscitando “ondas regressivas” de apelo às falsidades da consciência
moralista e hipócrita, em prejuízo da segurança dos cidadãos.
As reflexões mais profundas sobre a ética da modernidade repeliram sempre com energia as tentativas conservadoras de desmoralizar o formalismo da lei em nome da espontaneidade, dos bons sentimentos, da palavra de honra.
É oportuno invocar a sabedoria de Thomas
Hobbes: “... cada qual governado por sua própria Razão, e não havendo algo que
o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria vida contra os
inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Assim
perdurando, esse direito de cada um sobre todas as coisas, não poderá haver
segurança para ninguém (por mais forte e sábio que seja), de viver durante todo
o tempo que a Natureza permitiu que vivesse”.
Hobbes rejeitou a visão do “estado de
natureza” como um passado idílico em que os homens conviviam pacificamente, em
que o homem era naturalmente bom. A convivência pacífica só pode surgir na
sociedade em que o Estado está consolidado, e a sociedade civil está submetida
às leis emanadas do Soberano. Sublinho a palavra leis. O soberano tem o dever
primordial de garantir a segurança de todos os cidadãos contra as ameaças de
violência de uns poucos.
Na Filosofia do Direito, Hegel condena as
queixas e reações contra a involução que pretende impor a moral particularista.
“São não apenas errôneos estes protestos, mas revelam um apego malsão à sua
própria particularidade que é desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da
moralidade”.
Emile Durkheim ensina que para Rousseau e
Kant, “as únicas formas morais de agir são aquelas que podem se adequar a todos
os homens indiscriminadamente, ou seja, que estão envolvidas na noção de homem
em geral”.
A Modernidade carrega em seu Espírito a
missão de universalizar os direitos e as obrigações enquadrados na formalidade
da lei. Quando o Espírito descuida, acordam os pequenos demônios da opressão,
do particularismo e da submissão dos indivíduos à vontade de outros indivíduos.
Essa é a essência da liberdade dos que se manifestam nas ruas, clamando pelo
fechamento do STF.
A tirania dos cidadãos de bem ensina que o
indivíduo é naturalmente bom, capaz de discernir entre o justo e o injusto, o
certo e o errado. A sociedade e as instituições, ao contrário, são corruptas e
corruptoras. Para essa gente, os compromissos típicos da democracia são
obstáculos para a realização da “verdadeira justiça”, aquela que está, desde o
útero materno, no coração dos homens. As instituições da sociedade, sobretudo o
Estado, com suas instâncias de controle, suas leis ambíguas e seus métodos de
punição insuficientemente rigorosos, tornam a Justiça uma farsa, um
procedimento burocrático e ineficaz.
A história, sobretudo a nossa, está aí para
mostrar que nenhum regime despótico deixou de invocar, nos seus momentos
preambulares, as virtudes, excelências e a superioridade de sentimentos dos
“homens que vieram para praticar o bem”.
No nosso Brasil, as transições sempre
acontecem para impedir que o passado fique no passado. A memória, enquanto
reflexão sobre o que passou, vai se apagando depressa, na mesma velocidade com
que se rearmam as forças e os interesses que comandaram os grandes desastres e
desatinos. A memória nacional é fraca porque o passado não passa e a história
parece um processo descontínuo e recorrente que Sérgio Buarque de Holanda
chamou de procissão de milagres
O sistema de forças que se abrigava sob a
pele do regime militar sobreviveu incólume à transição democrática. Pior que
isso, durante estes anos de observância das regras democráticas cresceu sem
parar o poder de veto e de bloqueio destas forças sobre qualquer iniciativa
política ou econômica capaz de alterar o status quo.
Há quem não perceba que cultivamos estes
primitivismos e esteja disposto a jurar que por aqui ainda predomina o homem
cordial, afetuoso e disposto ao perdão e à amizade. Neste caso, a ignorância
nativa está se valendo da falsificação de um conceito elaborado por Sérgio
Buarque - o homem cordial - para designar um comportamento típico: avesso às
normas gerais, impessoais e igualitárias, e inclinado às relações de compadrio,
ao favorecimento, ao particularismo, à reafirmação das desigualdades. Para os
amigos tudo, para os inimigos...
Somos, na verdade, muito mais iguais ao que
fomos no passado. Somos, afinal, nossos próprios fantasmas. Nossos mortos somos
nós e assim não temos as lições do passado, mas a eternidade da recorrência e
da mesmice. Somos inimitáveis e originais, por certo, nas celebrações e nos escândalos.
Aí sim, escancaramos a alma e produzimos espetáculos deslumbrantes, feéricos. O
mundo se curva, entre estarrecido e deslumbrado, diante da torpeza inocente,
translúcida, da baixaria sem preconceitos, franca e risonha.
Faltam-nos os momentos de seriedade
trágica, aquele instante fundador em que o declínio do velho é substituído
apenas por sinais, indícios, débeis movimentos do novo, que obrigam o homem a
se decidir ainda suspenso entre dois mundos. Nossa história é na verdade uma
procissão de milagres.
*Luiz Gonzaga Belluzzo, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, recebeu recentemente da Universidade Federal de Goiás o título de Doutor Honoris Causa.
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