O Estado de S. Paulo
A bipolaridade mitológico-maniqueísta
enfraquece a democracia e não dá conta da complexidade da nossa sociedade.
Qualquer debate sustentado numa polarização
despreza a natureza complexa da realidade, que é um grande meio de campo
múltiplo, diversificado e rico de possibilidades históricas. Especialmente na
política, isso não dialoga com a potência do amplo leque de ideias, projetos e
programas de ação que a vivacidade humana enseja e reclama para a construção da
vida civilizada.
Assim, a discussão política reduzida a dois
polos fica limitada em meio à constelação de alternativas, constrange, faz
pouco-caso da amplitude de oportunidades de viabilizar as transformações
socioeconômicas sempre tão urgentes e renovadas pelo andor da história. Como
nos lembrou o saudoso geógrafo Milton Santos, a política é a “arte de pensar as
mudanças e torná-las efetivas”. Desse modo, pode-se dizer que política
polarizada é política deficitária.
Como alcançar a visão, as conversas abrangentes e densas requeridas pela ação política numa contingência de restrições de perspectiva e limitação de rumos à caminhada? Como, numa realidade de polarização hostil, superar as distâncias entre os polos e construir pontes que nos levem ao virtuoso caminho do meio? Como ir além da esquematização reducionista pautada pelo populismo antidemocrático, de um lado, e pelo populismo anacrônico, de outro?
Em resumo, este é o gigantesco desafio que
se apresenta em ano de uma eleição vital para os destinos de nossa nação:
escapar das armadilhas populistas que empobrecem o debate político-eleitoral
ou, antes, o sequestram da agenda da realidade massacrante.
O populismo afeta democracias mundo afora,
não é doença tropical. Mas, dadas as condições de nossa realidade, os estragos
causados na cambaleante condição da vida socioeconômica e político-cultural
nacional são dramáticos.
Perder a oportunidade de debates consistentes,
distanciados de delírios tanto na fabulação de problemas quanto na imaginação
de soluções, é algo com repercussões graves para o hoje e para o amanhã. Ao nos
alienarmos da vida real, estamos pisando fundo no acelerador de históricas
mazelas brasileiras, especialmente a desigualdade, o empobrecimento da
população e o desperdício de oportunidades de efetivo desenvolvimento.
Com razão e emoção, os agentes políticos e
a sociedade civil precisam estabelecer diálogos em torno de problemas
concretos, em busca de soluções modernas e eficazes, tornando tanto o debate
quanto a ação política contemporâneos do nosso tempo. Só assim passaremos a
trilhar o caminho da transformação de nossos potenciais em prosperidade
compartilhada.
Essa agenda, que tenho chamado de “novo
início” nacional, só deslancha com a realização de reformas estruturantes. Não
dá para seguirmos com um sistema tributário caótico, colocando-se como
correntes que aprisionam e impõem uma letargia intolerável e incompatível às
nossas possibilidades econômicas. A máquina governativa deve deixar de ser
nicho de patrimonialismos e seara de ação corporativista e se atualizar aos
padrões do digital.
É urgente investir na educação básica,
incluindo tempo integral na escola e formação técnico-profissionalizante no
ensino médio. Pela relevância do SUS na pandemia, ficou claro que é preciso
reforçar o sistema público da saúde, especialmente nos aspectos gerenciais. A
segurança pública é outro assunto urgente a ser tratado. É preciso reorganizar
as políticas assistenciais para que sejam efetivamente uma ação de superação da
vergonhosa realidade de concentração de renda no País.
São emergenciais a ampliação do mercado de
trabalho e a dinamização da economia com incremento de incentivos à pesquisa
científica e à inovação. A proteção e a preservação do meio ambiente, em
especial a Amazônia, devem compor políticas públicas vigorosas, que incluam o
combate a crimes como desmatamento, garimpo ilegal e grilagem de terra, e que
ajudem a gerar renda e valor para a população da Amazônia, entre a qual muitos
vivem abaixo da linha de pobreza.
Precisamos estar aptos a aproveitar as
possibilidades da digitalidade, das demandas por infraestrutura (portos,
ferrovias, dados/5G, rodovias, energia, saneamento, entre outros), da ampliação
das interfaces econômicas do Brasil com o mundo e da extraordinária janela de
oportunidade, para nós, da economia verde.
Essa monumental agenda, tanto de desafios
quanto de oportunidades, hoje está sombreada por um debate político-eleitoral
empobrecido, esvaziado pela polarização e imantado pelo culto ao personalismo,
dia a dia alimentado e, infelizmente, ampliado pelos tentáculos de redes
sociais perversamente instrumentalizadas.
O Brasil precisa ultrapassar a cilada da
bipolaridade mitológico-maniqueísta, que enfraquece a democracia, não dá conta
da complexidade da nossa sociedade, mascara a efetiva potência da política e só
fortalece a marcha da insensatez que compromete ainda mais a nossa caminhada
histórica rumo a um tempo de justiça social e inclusão econômica de verdade.
*Economista, presidente-executivo da IBÁ,
membro do Conselho Consultivo do Renovabr, foi governador do Estado do Espírito
Santo (2003-2010/2015-2018)
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