sexta-feira, 17 de março de 2023

José de Souza Martins* - As joias e o poder dos presentes

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Episódio envolvendo Arábia Saudita e o governo brasileiro pode criar uma consciência crítica de que a confusão decorre do nosso atraso cultural e político

A estranha incerteza quanto ao destinatário das joias enviadas da Arábia Saudita, supostamente ao governo do Brasil, tem ocupado a atenção da mídia nos últimos dias. Talvez porque esse poderá vir a ser motivo de um caso policial.

Também no âmbito dessas relações, é crime alguém apropriar-se do que é público. E o que é homenagem pessoal ao governante deve revestir-se do valor e da modéstia do que é simbólica manifestação de respeito. A dádiva, nesses casos, não pode ser tão desproporcional à função de quem ocupa o poder que se torne manifestação de desrespeito ao país que ele governa.

Essa distinção fica difícil numa sociedade como a nossa, em que muitas pessoas e mesmo pessoas na política não distinguem entre o que é público e o que é privado. Temos uma história de corrupção política que expressa para muitos a naturalidade dessa confusão. O eleitor, não raro, entendendo que a apropriação privada do que é público é um privilégio inerente à função política.

Ou seja, para muitos, nossa sociedade ainda é uma sociedade estamental, de gente com privilégios de nascimento, acima da lei, não obstante esses privilégios tenham sido abolidos antes da proclamação da Independência. Somos um país de história lenta.

A desproporção dos presentes desse episódio em relação às limitações de postura e de apresentação pessoal das duas pessoas indicadas como supostas destinatárias das joias poderia dizer alguma coisa educativa a toda a população. Será uma pena se não disser. Justamente no sentido de criar uma consciência crítica de que a confusão decorre do nosso atraso cultural e político. Uma consciência do ridículo de um presidente que se apresenta em público em maldisfarçada posição de sentido a usar um relógio desproporcionalmente cravejado de brilhantes, seria uma imagem de alguém que passou do limite do decoro necessário a um presidente em sua apresentação pessoal.

E o mesmo se poderia dizer do presente de R$ 16,5 milhões adornando o colo da primeira-dama, numa cerimônia de Estado, sendo ela ostensivamente evangélica, de quem os evangélicos esperam recato e modéstia em vez de antievangélica ostentação. Sobretudo num país em que 33 milhões de pessoas estão passando fome e mais de 100 milhões estão em situação de carência alimentar. Em que dezenas de milhares moram na rua, crianças, mulheres e velhos.

Há outras indagações possíveis sobre as incertezas que o presente saudita desperta. Tudo que é anômalo, nas relações sociais e políticas, tende a mobilizar e expor concepções e valores no mais das vezes ocultos. A provavelmente mais interessante é a de como a sociedade brasileira vê culturalmente o presente, a dádiva, de modo geral.

O presente, para muitos, é um objeto dos ritos de bajulação e de deferência. O presente supostamente alicia e subjuga o outro. E o mais estranho é que os mais simples não resistam à tentação de bajular os ricos e, especialmente, os poderosos. Aí a dádiva tem uma função social que expressa nossa alienação política.

Levo em conta alguns dos objetos removidos do Palácio do Planalto, quando da mudança do presidente e sua família no término do mandato. Faziam parte da vasta coleção de 7.500 objetos que os admiradores lhe enviaram de presente. Um deles, a escultura em madeira de uma motocicleta, em tamanho natural, com o título de “Harley Mito”. Era exibida diante da tribuna presidencial em cerimônias oficiais. Tão desencaixada quanto as joias de agora.

Há alguns anos visitei o Museu da Presidência da República junto ao Palácio de Belém, em Lisboa. É um museu belíssimo, organizado de maneira apropriada, que exibe grande número de presentes de Estado, recebidos por vários presidentes.

Há dois presentes de brasileiros. Um deles, de 1957, quando o presidente Craveiro Lopes visitou o Brasil. No Amazonas, recebeu um presente insólito. Um grande casco de tartaruga no qual um artista regional pintara cenas amazônicas. Naquele momento, tinha algum sentido. No museu de hoje, tornou-se grotesca coisa antiecológica. O museu tem grande número de obras de arte e obras preciosas que expressam uma refinada concepção de presentes de Estado. Dentre essas preciosidades, uma escultura de Bruno Giorgi, oferecida ao presidente Ramalho Eanes quando de sua visita ao Brasil, em 1978, que nos redimiu da casca de tartaruga.

Um desses presentes, descabido, foi oferecido ao papa João Paulo II, em sua primeira visita ao Brasil, em 1980. Damião Galdino da Silva, motorista do Senado Federal, aproximou-se dele e lhe ofereceu como dádiva seu jegue Jericar. Para ele, o jegue era um símbolo dos pobres e do sertão. Embarcado num navio, o jegue morreu durante a viagem para a Itália.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

 

12 comentários:

Fernando Carvalho disse...

A moto de madeira Harley Mito é ao mesmo tempo um presente "personalíssimo" (se me dessem eu jogaria fora) que a lei entende apenas objetos como boné, camiseta e quetais e um objeto de arte. Se o boçal colocasse ela à venda algum bilionário seguidor dele daria um milhão de reais por ela. Diante disso o caráter personalíssimo da moto perde sentido diante do valor dela. De modo que o boçal não poderia tê-la levado para casa.

Anônimo disse...

O caso Bozo despertou USA para o mesmo problema, Arábia Saudita, Trump falhou em reportar a respeito de centenas de presentes com um valor total acima de 1/4 de milhões de dólares. Espadas de ouro dos Sauditas, joias Indianas. Não é atoa que o
Bozo e o Trump são farinhas do mesmo saco. Jared Kushner teceu as caras swords dos Sauditas. Nesse imbroglio não salva ninguém.

Anônimo disse...

Os presentes dados a família do Trump deixa no chinelo os presentes africanos, relógio Rolex. Por coincidência assombrosa o Trump também não declarou os presentes como deveria. As espadas do genro foi desde 2017. CORRUPÇÃO partilhada Brasil se promovendo a status de USA.

Anônimo disse...

Do presidente de Salvador recebeu um quadro do Trump tamanho natural. Quem vai querer um presente feste? 2 presentes estão sumidos.

Anônimo disse...

As leis brasileiras com respeito ao tema eleitoral são mais rigorosas que em USA. Um ex. Quando John McCain candidatou à presidência concorrendo com o Obama, a sua candidata à vice (partido Republicano) recebeu. $ 150.000 D para adquirir roupas chic condizente com uma provável vice-presidente, para meu espanto isto foi considerado uma coisa corriqueira. Se fosse aqui no Brasil seria considerado crime lesa para o partido opositor.

Anônimo disse...

Sarah Palin vice de McCain, Ano 2008.

Anônimo disse...

Resumo da ópera, isso é mais comum que alguém possa pensar, principalmente quando se trata de quadro a óleo de Ivanka Trump ou do agente laranja.

Anônimo disse...

Portanto, é melhor esclarecer de que o Brasil nem sempre é o vilão reconhecido por alguns, mais ponderação é plenamente justificável.

Anônimo disse...

A história do Crucifixo deu muita confusão. Sofre complexo de inferioridade quem excede na rígida concepção que tudo de ruim no mundo só acontece no Brasil.

Anônimo disse...

Pior são os DOCs não desclassificado é que o Trump, Biden e o vice Pence não fizeram a obrigação de devolver ao Estado. Os do Biden constavam de coisas inocentes, tais como compras caseirinhas, pior foi o Trump com coisas relacionadas a segurança nacional e nuke.

Anônimo disse...

USS Indianapolis - torpedeado pelos Japoneses em 30 de Julho de 1945. O navio afundado em apenas 12 minutos a tripulação permaneceu na água durante 5 dias sendo devorada por tubarões. Ao final dos 1.196 homens apenas 317 sobreviveram. Se tivesse acontecido no Brasil, estaríamos até os dias de hoje jogando pedra no comandante do navio e falando mal de nós brasileiros.

Anônimo disse...

É preciso resgatar a imagem do Brasil, Bozo foi uma catástrofe muito grande, todos sabemos, o que temos de fazer é colocar nosso país de volta aos trilhos e trabalhar para que esses acidentes do destino não se repitam mais. Menos fofocas e mais sugestões é o começo da trilha e quanto mais cedo iniciarmos melhor, porque o caminho é longo.