O Estado de S. Paulo
Proteção ambiental pode ser o eixo temático
para construir uma visão única sobre o Brasil que queremos
Todo brasileiro tem um conflito: o orgulho
do nosso país e de suas potencialidades e a frustração pelo choque entre aquilo
que ele poderia ser e aquilo que ele é. O sentimento descrito por Darcy Ribeiro
– “tenho tão nítido o que o Brasil pode ser, e há de ser, que me dói demais o
Brasil que é” – talvez encapsule este misto de esperança e insatisfação. A
construção deste Brasil do qual possamos nos orgulhar seguirá como uma promessa
enquanto não conseguirmos construir uma visão compartilhada daquilo que
queremos.
Tomemos a agenda de mudanças climáticas, um dos principais desafios que temos a enfrentar. A maioria dos brasileiros (96%) reconhece que o aquecimento global já está acontecendo e 77% consideram importante proteger o meio ambiente, ainda que isso signifique menor crescimento econômico e menos empregos. Os dados da pesquisa Mudanças climáticas na percepção dos brasileiros, realizada pelo Ipec a pedido do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS) e da Universidade
Yale, reforçam que, quando se trata de
proteger a natureza e enfrentar as mudanças climáticas, não há, a princípio,
uma visão polarizada. Nem deveria – embora essa discussão frequentemente volte
ao campo do “nós contra eles”. Em que a polarização nos ajuda? Para onde a
dicotomia que ainda há entre proteção ambiental e crescimento econômico nos
levou até agora?
Em 2001, o papa João Paulo II disse que “é
preciso estimular e apoiar a ‘conversão ecológica’, que nestes últimos decênios
tornou a humanidade mais sensível aos confrontos da catástrofe para a qual está
a caminhar”. Embora ele estivesse certo no que diz respeito à necessidade de
promover uma “consciência ecológica”, na prática, a maioria dos brasileiros não
é motivada por uma ameaça global abstrata.
Os trabalhadores do campo percebem os
efeitos da emergência climática em sua produção. As populações de comunidades
periféricas sentem na pele os efeitos dessas mudanças nas enchentes. O
brasileiro médio sente no bolso quando erros de gestão somados aos efeitos das
mudanças climáticas afetam os preços. Mas, mais do que apenas sentir os
impactos negativos, os brasileiros também valorizam profundamente a comunidade
em que vivem, a beleza da natureza ao seu redor e o modo como a sua família e
as suas tradições se moldam a partir disso. A visão que se tem daquilo que o
Brasil poderia ser necessariamente passa pela proteção da sociobiodiversidade.
Este é um artigo sobre algo que precisamos
resolver se quisermos dar conta de qualquer um dos obstáculos que há entre nós
e o País com que sonhamos. Precisamos que os diferentes grupos comprometidos
com um Brasil democrático, e que hoje talvez se encontrem em lados opostos do
espectro político, possam dialogar e chegar a um consenso que faça sentido para
todos. Quando trago, aqui, a agenda de proteção da natureza, é por acreditar
que a construção de uma noção compartilhada de bem comum pode ter essa pauta como
um dos caminhos para isso.
A pesquisa Finding France, um estudo
nacional da organização More in Common França sobre o estado da vida
democrática naquele país, mostra uma França profundamente dividida, mas com
“proteção ambiental” como um dos temas capazes de unir a população. Por aqui,
essa agenda não figura entre as prioridades dos brasileiros, mas é um tema com
o qual a grande maioria da população se preocupa e que pode ser o eixo temático
para construir uma visão única sobre o Brasil que queremos. Isso porque a
história da democracia brasileira também está profundamente ligada ao uso da
terra e à exploração da natureza e de mão de obra de populações que foram
marginalizadas.
Resolver problemas históricos e estruturais
envolve, portanto, um processo de reparação histórica dos grupos que foram
prejudicados e vulnerabilizados, mas também envolve um trabalho conjunto entre
os diferentes grupos comprometidos com o fortalecimento da democracia no País.
Neste exercício de promoção do bem comum pela natureza, a participação cívica e
o fortalecimento de associações locais são elementos fundamentais para a
construção de soluções estáveis e bem-sucedidas para as mudanças climáticas no
Brasil, e um contrapeso importante para a crescente internacionalização da política
climática brasileira nos últimos anos.
Um exemplo é o trabalho realizado pela
organização recifense Nós na Criação, um movimento liderado por evangélicos que
busca promover a ecoteologia em comunidades cristãs e gerar nas igrejas e entre
os fiéis um senso de responsabilidade em relação à proteção da natureza
enquanto criação divina.
O cientista político Alexis de Tocqueville
falava que associações com forte participação cidadã atuavam como grandes
“escolas livres de democracia”. A construção do Brasil que queremos, com a
sociobiodiversidade protegida, valorizada e reconhecida como um vetor para o
desenvolvimento econômico e social, pode vir a partir da promoção de soluções
construídas por cidadãos, organizações, grupos políticos e movimentos capazes
de superar as suas diferenças e trabalhar juntos. •
2 comentários:
Parabéns à Jornalista por trazer à discussão sadia e muito importante a infeliz frase “nós contra eles” que dita por vários anos estressou a tal ponto nossa sociedade que chegamos ao ponto desta aberração dos últimos 4 anos. “Nós contra eles, nunca mais”
"proteção da natureza enquanto criação divina"?
VTNC...
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