O Estado de S. Paulo
É preciso desligar o poder de remunerar a mentira. Canal do mundo sombrio, falar de ‘big tech’ é falar de uma ferida que já é incorrigível
Se um boi pudesse usar as redes sociais,
certamente o faria como quadrúpede. Mosca varejeira que faz o indivíduo se
render à sua picada e, engolido sem esforço, deixá-la digerir seu mundo.
Colecionadoras de fantasma em troca do fastio de efusões, as gigantes digitais
são o maior sim que o poder já ousou criar. Com faceta velhaca, faz-se aliado
do usuário enquanto absorve todas as coisas de quem obedece mais. Canal da
adversidade, quer se ver como fortuna.
A fraude intrínseca das redes sociais é a pretensão de saber o modo de funcionamento do indivíduo e se achar espelho da realidade. Quando, na verdade, criaram um padrão – subgênero-gente-digital – tirado da fragilidade da identidade e das ninharias da personalidade. Amo que cindiu e alienou a pessoa a instâncias externas e com práticas desleais de causar sensação, combinadas com almas intrusivas, ilegais e nocivas, usurpou a grandeza da internet. Os atos contradizem os ares de direito que se deram. Malignidade da sagacidade, como foi fácil fabricar um ser rendido!
Moraes, Dino e Orlando foram direto ao
ponto ao dizer que o que é crime na vida real é crime na internet. Estrada
pedregosa de conexões táteis, virou sinônimo de monopólios abusivos que violam
a soberania do País e dão majestade ao espírito de porco.
Não basta a descrença no sobrenatural e em
impulsos sacrílegos. É a lei que bota limite no furor de incontroláveis. O
virtual/digital, berço da repetição e túmulo da fala, não pode ser subestimado.
Magnatas da instantaneidade, obcecados em dominar o mercado da crença, não
imaginavam que o Brasil os confrontaria, como o fez a União Europeia. Loja de
brinquedo dos segredos interiores adora a pessoa intencional irrefletida.
O que tais empresas fazem é blefar com a
noção de liberdade impondo ao elemento afetivo o paradoxo meio moderno/modo
primitivo. Vigilância e dependência do usuário vendidas como liberalismo
ordinário.
Como não querem sofrer na própria carne,
dizem que apenas dão espaço para a manifestação do outro. Compilam e distorcem
biografias e fatos como as galinhas ciscam; imaginam que não é demonstrável o
mal que propagam. Crescem em influência vendendo a ideia de que liberdade é
escolher seus próprios deuses. Exploram o sentimento humano sem participar de
sua formação. Fustigam instituições que ameaçam sua sobrevivência.
Como avançaram esbarrando nos destroços de
políticas, culturas e espiritualidades decadentes, impuseram à sociedade a
descrença no limite. Canal preferido do indivíduo-gangue, sócio do aliciamento
que computador, celular ou qualquer aparelho sem controle o oferece para agir
errado e escapar sem culpa.
Reservatórios de segredos de deslumbrado
clube de egos instantâneos, apontam o dedo, fotos, vídeos, intimidade,
publicidade e pesquisa. Carcereiros dos níveis profundos da vaidade, enfeitiçam
pessoas em piqueniques da leviandade de expressão e despotismo espiritual, mais
moderna forma de moagem da vida humana.
Quando a vítima da própria esperança ou
desespero usa rede social, a estabelece para si como valor. Impregnada, ninguém
a convence de que é empurrada, e não atraída pelo destino. Nem percebe que se
oferece à dissecação como alma que não sabe se salvar. O ermo habitado do
virtual facilita o incitamento; as bobagens que entopem a tela, seu natural. É
como cair da vida.
A liberdade sem discernimento predomina nas
mídias sociais. No ranking dos conectados, é corriqueiro falar e agir com
opinião emprestada e achar que tudo está bem se obtém seguidores. A ação sem
sabedoria captura o lado vil da personalidade e pode levar às vias de fato. O
freio de arrumação se justifica ao buscar compreensão melhor da convivência
humana diante das modernas patologias sociais. Para salvar a internet da
manipulação e não deixar que por ela trafegue perversidade, irrefletida ou
culpada. Como está, é repositório de um mundo que não se envergonha, de baixa
estima coletiva. E, ao abusar da paciência humana, voa acima de sua credulidade
para cair das alturas no crime ou na aceitação do mal recreativo.
Aplicar a lei, e buscar manter a
superstição dentro de certos limites, ajuda a coibir o antissocial e
enfraquecer a convicção de que é normal usar de forma torpe rede online, pela
convicção de que a desonestidade virtual não é do mundo real. Recuperar a graça
da cultura e não renunciar ao esforço cognitivo é recusar a dar o salto mortal
que idolatra os predadores da internet.
Ao contrário do que se pensa, as big techs
são o oposto da sociedade aberta, informada e livre. Sua força é dirigir e
vigiar o comportamento. O uso de clichês e adaptação (in)consciente a uma forma
especial de culto cria o lugar do curioso sem escolha. Ali, o sonho de uma vida
racional está em jogo. Inverte o afeto dos assíduos e os faz deitar e rolar no
colapso da cultura humanista. Um arsenal de benzedeiro em prontidão, delegado
do distrito afetivo de usuários.
Por fora bela viola, por dentro pão
bolorento. Não há como melhorar um erro. É preciso desligar o poder de
remunerar a mentira. Canal do mundo sombrio, falar de big tech é falar de uma
ferida que já é incorrigível.
*Sociólogo.
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