domingo, 17 de setembro de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo - Trombadas geoeconômicas

O jogo de espelhos liberalismo versus protecionismo

Em artigo recente publicado no Project Syndicate, o economista Dani Rodrik discorreu a respeito da oposição liberalismo versus protecionismo.

“‘A era do livre-comércio parece ter acabado. Como a economia mundial se sairá sob o protecionismo?’ Esta é uma das perguntas mais comuns que ouço hoje em dia. Mas a distinção entre livre-comércio e protecionismo (como a entre mercados e Estado, ou mercantilismo e liberalismo) não é especialmente útil para entender a economia global. Não só deturpa a história recente, como também interpreta mal as transições políticas de hoje e as condições necessárias para uma economia global saudável.”

No livro Trade, Development and ­Foreign Debt, o economista americano Michael Hudson faz uma avaliação histórica e crítica das teorias do comércio e das finanças internacionais, desde os mercantilistas até os dias de hoje.

Para Hudson, as palavras “protecionista” e “livre-cambista” são etiquetas ideológicas que ocultam as razões de fundo das divergências. O capitalismo realmente existente conta uma história mais ambígua do que aquela narrada pelos fundamentalistas – de um lado e de outro – a respeito do desenvolvimento das relações econômicas internacionais. Protecionismo e livre-cambismo convivem como cães e gatos. Brigam o tempo todo, mas são inseparáveis.

No fim do século XIX, no apogeu da ordem liberal burguesa, a expansão do comércio e das finanças internacionais estava fundada nas relações simbióticas entre o liberalismo da Inglaterra hegemônica e as políticas protecionistas de industrialização dos retardatários europeus e dos Estados Unidos.

A boa história econômica ensina que os Estados Unidos têm uma longa e persistente tradição de práticas protecionistas. Os primeiros passos da caminhada protecionista estão recomendados no ­Relatório Sobre as Manufaturas, de Alexandre ­Hamilton, publicado em 1791. Hamilton,­ então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, desenvolveu uma brilhante argumentação em defesa da manufatura como fonte da ampliação da divisão do trabalho, ganhos de produtividade.

Pérfidas considerações sobre o celebrado liberalismo da Inglaterra pedem passagem. Na segunda metade do século XIX, depois de suspender, em 1841, a proibição de exportar máquinas e artesãos, revogar, nos idos de 1846, a proteção à sua agricultura protegida pela Corn Law, o liberal-mercantilismo da pérfida Albion comandou a expansão do comércio e das finanças internacionais.

O liberal-mercantilismo da ­Inglaterra hegemônica criou as condições para as políticas intencionais, diga-se protecionistas, de industrialização da Alemanha e dos Estados Unidos. Ironias da história: uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa, ensinam as cartilhas da dialética elementar para positivistas teimosos.

Os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão ingressaram no cenário mundial fazendo valer a modernidade de ­suas respectivas estruturas capitalistas, especialmente a agilidade de seus bancos e a presença ativa de seus respectivos Estados nacionais. A emergência de novas potências inaugurou um período de grande rivalidade internacional. A disputa pela preeminência econômica intensificou a penetração de capitais nas áreas provedoras de matérias-primas e alimentos, alterando a configuração da chamada periferia do mundo capitalista.

No fim do século XIX, os EUA já eram a economia industrial mais poderosa do planeta, além de ostentar – graças à excepcional dotação de recursos naturais – a posição de grande exportadora de matérias-primas e alimentos, e de contar com Nova York, um centro financeiro e de negócios, capaz de promover simultaneamente os investimentos de alto risco em novos setores e a rápida centralização de capitais.

A constituição da hegemonia americana não pode ser compreendida sem a avaliação dos efeitos das duas grandes guerras, a de 1914-1918 e a de 1939-1945. O período do entreguerras liquidou de vez a hegemonia inglesa.

A crise de 1930 agrava a desorganização do sistema mundial e leva ao surgimento de experiências nacionalistas e estatizantes de vários matizes. Os Estados Unidos tentam a experiência do New Deal. No continente europeu, a gravidade do desemprego, a deflação e a contração do comércio internacional decorrente das desvalorizações competitivas levam a um alto grau de intervenção do Estado. A arregimentação de massas sem precedentes leva ao surgimento de nacionalismos autoritários que reforçam o expansionismo bélico das chamadas potências do Eixo e levam à eclosão da Segunda Guerra Mundial.

No pós-guerra, Keynes e Dexter ­White apresentam em Bretton Woods as concepções que deveriam inspirar a construção das instituições e das regras destinadas a presidir a nova ordem econômica internacional. Essas concepções rejeitavam as virtudes do mercado autorregulado e eram particularmente negativas em relação à livre movimentação de capitais.

Não seria impróprio afirmar que o poder americano se debilitou no exercício de suas forças

O arranjo monetário realmente adotado em Bretton Woods suscitou os solavancos dos anos 70 – a desvinculação do dólar ao ouro em 1971 – e a posterior flutuação das moedas, em 1973. A elevação brutal do juro básico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro Mundo e lançou os europeus na caminhada para o Euro.

No mesmo passo, a valorização da moeda americana lançou suas empresas à busca de espaços favoráveis aos seus negócios. Em mais uma ironia da história, os recém-acolhidos chineses à órbita ocidental foram bafejados com o afluxo de capitais americanos, japoneses e europeus em sua economia reformada por Deng Xiao Ping.

Não seria impróprio afirmar que o poder americano se debilitou no exercício de suas forças. Mais uma vez, no movimento de suas estruturas, o capitalismo iludiu as conjecturas e os projetos dos homens. O exercício do poder americano desencadeou transformações financeiras, tecnológicas, e geopolíticas que culminaram no enfraquecimento de sua hegemonia.

No outro lado do mesmo processo, as lideranças chinesas valeram-se da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro ávido em aproveitar a oferta abundante de mão de obra. Apostaram na combinação favorável entre câmbio real competitivo, juros baixos para estimular estratégias nacionais de investimento em infraestrutura, absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais e crescimento das exportações.

As manchetes proclamam o paradoxo contemporâneo: há riscos de guerra comercial entre o protecionismo dos Estados Unidos e a China do livre-comércio. Às ameaças americanas de protecionismo, os chineses responderam com a defesa do multilateralismo do livre-comércio. 

*Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.

 

Um comentário:

Daniel disse...

Perfeito!