O jogo de espelhos liberalismo versus protecionismo
Em artigo recente publicado no Project
Syndicate, o economista Dani Rodrik discorreu a respeito da oposição liberalismo versus
protecionismo.
“‘A era do livre-comércio parece ter
acabado. Como a economia mundial se sairá sob o protecionismo?’ Esta é uma das
perguntas mais comuns que ouço hoje em dia. Mas a distinção entre
livre-comércio e protecionismo (como a entre mercados e Estado, ou mercantilismo
e liberalismo) não é especialmente útil para entender a economia global. Não só
deturpa a história recente, como também interpreta mal as transições políticas
de hoje e as condições necessárias para uma economia global saudável.”
No livro Trade, Development and Foreign
Debt, o economista americano Michael Hudson faz uma avaliação histórica e
crítica das teorias do comércio e das finanças internacionais, desde os
mercantilistas até os dias de hoje.
Para Hudson, as palavras “protecionista” e “livre-cambista” são etiquetas ideológicas que ocultam as razões de fundo das divergências. O capitalismo realmente existente conta uma história mais ambígua do que aquela narrada pelos fundamentalistas – de um lado e de outro – a respeito do desenvolvimento das relações econômicas internacionais. Protecionismo e livre-cambismo convivem como cães e gatos. Brigam o tempo todo, mas são inseparáveis.
No fim do século XIX, no apogeu da ordem
liberal burguesa, a expansão do comércio e das finanças internacionais estava
fundada nas relações simbióticas entre o liberalismo da Inglaterra hegemônica e
as políticas protecionistas de industrialização dos retardatários europeus e
dos Estados Unidos.
A boa história econômica ensina que os
Estados Unidos têm uma longa e persistente tradição de práticas protecionistas.
Os primeiros passos da caminhada protecionista estão recomendados no Relatório
Sobre as Manufaturas, de Alexandre Hamilton, publicado em 1791. Hamilton,
então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, desenvolveu uma brilhante
argumentação em defesa da manufatura como fonte da ampliação da divisão do
trabalho, ganhos de produtividade.
Pérfidas considerações sobre o celebrado
liberalismo da Inglaterra pedem passagem. Na segunda metade do século XIX,
depois de suspender, em 1841, a proibição de exportar máquinas e artesãos,
revogar, nos idos de 1846, a proteção à sua agricultura protegida pela Corn
Law, o liberal-mercantilismo da pérfida Albion comandou a expansão do comércio
e das finanças internacionais.
O liberal-mercantilismo da Inglaterra
hegemônica criou as condições para as políticas intencionais, diga-se
protecionistas, de industrialização da Alemanha e dos Estados Unidos. Ironias
da história: uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa, ensinam as
cartilhas da dialética elementar para positivistas teimosos.
Os Estados
Unidos, a Alemanha e o Japão ingressaram no
cenário mundial fazendo valer a modernidade de suas respectivas estruturas
capitalistas, especialmente a agilidade de seus bancos e a presença ativa de
seus respectivos Estados nacionais. A emergência de novas potências inaugurou
um período de grande rivalidade internacional. A disputa pela preeminência
econômica intensificou a penetração de capitais nas áreas provedoras de
matérias-primas e alimentos, alterando a configuração da chamada periferia do mundo
capitalista.
No fim do século XIX, os EUA já eram a
economia industrial mais poderosa do planeta, além de ostentar – graças à
excepcional dotação de recursos naturais – a posição de grande exportadora de
matérias-primas e alimentos, e de contar com Nova York, um centro financeiro e
de negócios, capaz de promover simultaneamente os investimentos de alto risco
em novos setores e a rápida centralização de capitais.
A constituição da hegemonia americana não
pode ser compreendida sem a avaliação dos efeitos das duas grandes guerras, a
de 1914-1918 e a de 1939-1945. O período do entreguerras liquidou de vez a
hegemonia inglesa.
A crise de 1930 agrava a desorganização do
sistema mundial e leva ao surgimento de experiências nacionalistas e
estatizantes de vários matizes. Os Estados Unidos tentam a experiência do New
Deal. No continente europeu, a gravidade do desemprego, a deflação e a
contração do comércio internacional decorrente das desvalorizações competitivas
levam a um alto grau de intervenção do Estado. A arregimentação de massas sem
precedentes leva ao surgimento de nacionalismos autoritários que reforçam o
expansionismo bélico das chamadas potências do Eixo e levam à eclosão da
Segunda Guerra Mundial.
No pós-guerra, Keynes e Dexter White
apresentam em Bretton Woods as concepções que deveriam inspirar a construção
das instituições e das regras destinadas a presidir a nova ordem econômica
internacional. Essas concepções rejeitavam as virtudes do mercado autorregulado
e eram particularmente negativas em relação à livre movimentação de capitais.
Não seria impróprio afirmar que o poder
americano se debilitou no exercício de suas forças
O arranjo monetário realmente adotado em
Bretton Woods suscitou os solavancos dos anos 70 – a desvinculação do dólar ao
ouro em 1971 – e a posterior flutuação das moedas, em 1973. A elevação brutal
do juro básico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro Mundo e
lançou os europeus na caminhada para o Euro.
No mesmo passo, a valorização da moeda
americana lançou suas empresas à busca de espaços favoráveis aos seus negócios.
Em mais uma ironia da história, os recém-acolhidos chineses à órbita ocidental
foram bafejados com o afluxo de capitais americanos, japoneses e europeus em
sua economia reformada por Deng Xiao Ping.
Não seria impróprio afirmar que o poder
americano se debilitou no exercício de suas forças. Mais uma vez, no movimento
de suas estruturas, o capitalismo iludiu as conjecturas e os projetos dos
homens. O exercício do poder americano desencadeou transformações financeiras,
tecnológicas, e geopolíticas que culminaram no enfraquecimento de sua
hegemonia.
No outro lado do mesmo processo, as
lideranças chinesas valeram-se da “abertura” da economia ao investimento
estrangeiro ávido em aproveitar a oferta abundante de mão de obra. Apostaram na
combinação favorável entre câmbio real competitivo, juros baixos para estimular
estratégias nacionais de investimento em infraestrutura, absorção de tecnologia
com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias
industriais e crescimento das exportações.
As manchetes proclamam o paradoxo
contemporâneo: há riscos de guerra comercial entre o protecionismo dos Estados
Unidos e a China do livre-comércio. Às ameaças americanas de protecionismo, os
chineses responderam com a defesa do multilateralismo do livre-comércio.
*Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital,
em 20 de setembro de 2023.
Um comentário:
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