Mayara Paixão / Folha de S. Paulo
Francesca Albanese afirma que facção terrorista cometeu crimes injustificáveis, mas critica resposta de Tel Aviv
Francesca Albanese, 46, enfrenta o período mais
crítico de seu trabalho desde que, há um ano e meio, assumiu a liderança da
relatoria especial da ONU para os territórios palestinos
ocupados, cargo criado em 1993 pelo Comitê de Direitos Humanos da organização.
Desde que eclodiu a
guerra entre Israel e Hamas, em 7 de outubro, a italiana condena de
maneira enfática o que chama de crimes de guerra cometidos pela facção
terrorista, ao mesmo tempo em que critica as ações de Israel e defende os
direitos de civis palestinos.
Albanese tem clamado por um cessar-fogo imediato e
afirma, nesta entrevista, que a comunidade internacional, cujas ações descreve
em termos como "repugnantes" e "cínicas", tem falhado.
A relatora diz que a
guerra trouxe à tona o antissemitismo e a islamofobia. E diz que a ocupação dos
territórios palestinos, que chama de um movimento colonizador feito por Israel,
agride os dois povos. "A colonização de povoamento aprisiona tanto os
palestinos quanto os israelenses. Claro, com responsabilidades
diferentes."
A italiana considera os ataques do Hamas, "crimes
hediondos", injustificáveis. Mas dia que a resposta de Tel Aviv "vai muito além do que é
razoável". A maneira como Israel age, diz, tende a fortalecer o Hamas
—que, afirma, não representa todos os palestinos de Gaza.
Em quais termos descreve os ataques do Hamas em 7 de outubro?
É um crime de guerra hediondo. Uma atrocidade. Quando há um conflito –é há uma
hostilidade contínua entre o Hamas e Israel– existem regras, e a principal é
respeitar os civis.
Civis nunca podem ser
alvos, especialmente da forma como o Hamas fez: matou
pessoas em massa, nas ruas, indo de casa em casa. E civis não podem
ser feitos reféns. Alvos militares são legítimos –quando soldados são
capturados, eles são prisioneiros de guerra. Mas civis não são prisioneiros de
guerra. Precisam ser libertados imediatamente.
A situação precisa ser abordada de uma vez por todas de
acordo com o
direito internacional. Isso não começou em 7 de outubro. Tem
ocorrido continuamente, agora com o tremendo golpe sem precedentes que o povo
israelense sofreu.
Mas também precisamos
discutir se a resposta que Israel deu em nome da autodefesa, de acordo com o
Artigo 51 da Carta da ONU, foi proporcional e legítima de acordo com o direito
internacional.
Como a sra. vê a relação dos civis palestinos com o Hamas?
Israel manteve por 56 anos uma ocupação militar que tem sido, de fato, um
modelo colonizador. E os palestinos estão completamente indefesos –mesmo que
haja a
Autoridade Nacional Palestina, ela não move um dedo, porque não
pode, de acordo com os
Acordos de Oslo.
Israel, e isso está
documentado, fez tudo o que era possível para apoiar o Hamas como uma força
divisória no movimento nacional palestino.
Pelo direito
internacional, os palestinos têm o direito à autodeterminação, mas a
resistência pacífica nos últimos 20 anos foi esmagada. Se o objetivo é
erradicar o Hamas de Gaza, o que Israel tem feito há 16 anos, que é manter a Faixa
de Gaza sob bloqueio, só vai fortalecê-lo. Opressão gera
resistência.
O Hamas tem uma espécie
de filosofia que não é diferente da de Israel: não distingue entre civis e
militares. Nesse sentido, para mim, são iguais. Mesmo que todos os membros do
Hamas sejam mortos, manter uma população inteira oprimida e privada de seus direitos
gera resistência.
Estamos falando de mais radicalização?
Não exatamente. Vamos imaginar que Israel tenha sucesso, o que espero que não
aconteça, em deslocar os palestinos de Gaza. Eles começarão um novo período de
refúgio no Sinai [península do Egito]. E não terão permissão para retornar,
nunca. Os civis estão pagando o preço porque são vistos como animais.
Voltei depois de três
anos na Palestina [em 2013] pensando que, se eleições tivessem ocorrido, o
Hamas teria vencido na Cisjordânia, e o Fatah, em Gaza. Houve um movimento por
mudança política em Gaza. O Hamas esmagou isso com um governo tirânico.
Quando você fala com as
pessoas em Gaza, elas não se sentem seguras. Não é verdade que o Hamas ainda
represente a vontade do povo –mas, ao mesmo tempo, é parte da resistência à
ocupação.
A sra. considera o Hamas um grupo terrorista?
Os relatores especiais não usam esse termo.
Quando eu trabalhava
para a UNWRA [agência da ONU para refugiados palestinos], o Hamas fechou
nossas atividades para crianças, os jogos de verão. Eram para 250 mil
crianças. E acabou com os direitos das mulheres. Como eu poderia justificar o
Hamas?
Mas, é uma organização
terrorista? O terrorismo não existe como uma definição internacionalmente
acordada legalmente.
A sra. já disse que os palestinos estão em grave perigo de limpeza étnica. Poderia discorrer sobre isso?
Há uma Comissão de Especialistas da ONU que, em 1994, elaborou um conceito,
que não é legalmente vinculante, sobre limpeza étnica: usar força ou
intimidação para remover pessoas de um determinado grupo de uma área, tornando
a área etnicamente homogênea. E isso é o que Israel tem feito.
Muitos membros do novo
governo têm pedido uma nova nakba [termo
com o qual palestinos se referem ao êxodo forçado em 1947-49].
Estão obcecados com a dominação demográfica do povo judeu em Israel. Todos no
Ocidente chamam o Estado Judeu como se fosse normal.
Mas uma democracia não é um Estado para todos? Como um
sistema legal duplo, que considera os colonos sob a lei civil e os palestinos
sob a lei militar, escrita por soldados, aplicada por soldados, seria
democrático? Como isso pode ser qualquer coisa além de apartheid?
Como a sra. avalia a resposta da comunidade internacional à guerra?
A reação de Israel aos crimes horrendos cometidos pelo Hamas vai muito além do
que é razoável e proporcional. Está se tornando uma operação militar
interminável. Israel gerou uma catástrofe dentro da catástrofe.
E a resposta da
comunidade internacional é repugnante. A situação saiu do controle, e, se não
for interrompida, veremos o terceiro e maior deslocamento forçado de
palestinos de suas terras.
O Conselho de Segurança
é responsável por tomar medidas para manter a paz e segurança internacionais e
está falhando em fazê-lo. Devemos pedir um cessar-fogo imediato. Sabemos que o
conselho está paralisado, mas espero sinceramente que, com o
Brasil na presidência rotativa, isso ajude a mudar a situação.
Ninguém, nem mesmo um
único alto funcionário da ONU, disse uma palavra sobre o cessar-fogo.
A sra. já disse que a ocupação militar dos territórios palestinos tem consequências tanto para os palestinos quanto para os israelenses. Quais são as consequências para o povo israelense?
O colonialismo é violento. E por causa disso, agride os palestinos e também os
israelenses que fazem isso, porque desumaniza aqueles que têm de impor esse
sistema. É um elemento psicológico.
Nurit
Peled [filósofa israelense] questiona o que transforma as
crianças israelenses em pessoas que podem matar quando completam 18 anos e se
juntam ao Exército. E ela diz que a resposta está na desumanização dos
palestinos nos livros didáticos israelenses. Há uma retórica poderosa que
torna os palestinos o inimigo. E isso influencia a política.
Essa guerra traz novamente à tona o debate sobre a desumanização dos árabes e judeus no Ocidente.
O antissemitismo é um fardo europeu. Europeus têm perseguido e maltratado os
judeus por séculos. Mas também há a islamofobia.
Há uma desconexão entre
a sociedade e o alto escalão político. Nos últimos anos, houve um aumento dos
laços entre governos europeus, especialmente os mais de extrema direita, e
Israel. Mas, no nível popular, uma vez que os governos estão tão próximos de
Israel, está aumentando a percepção, ultrajante, de que todos os israelenses
fazem parte do conflito.
E é por isso que fiquei
chocada por quase não ter visto manifestações de solidariedade em relação aos
civis israelenses que foram mortos. Pelo amor de Deus, somos todos seres
humanos.
A colonização de
povoamento é um empreendimento violento e criminoso que aprisiona tanto os
palestinos quanto os israelenses. Claro, com responsabilidades diferentes.
Que tipo de solução vê para esta guerra?
Não vejo solução até que deixemos os princípios básicos dos direitos humanos e
da igualdade permear nossas mentes. O Ocidente fez um cordão em torno de
Israel, reconhecendo apenas o seu direito à autodefesa sem perguntar como eles
vão fazer isso.
A presidente da
Comissão Europeia [a alemã Ursula von der Leyen] disse que iriam tentar ajudar
os palestinos, mas enquanto eles estão sendo bombardeados e não se tenta parar
os bombardeios? Quão cínico isso pode ser?
Podemos ser poupados
dessa hipocrisia e voltar ao papel da política nessa história: tentar garantir
o bem coletivo sem discriminação, sem racismo, sem duplos padrões. Se apenas
os israelenses têm direitos, estaremos sendo racistas.
2 comentários:
MARAVILHOSA !
■A senhora tem uma uma posição maravilhosa quanto à questão Palestina, dona Francesca Albanese. Maravilhosa!
Francesca analisou perfeitamente a situação! Pena que os colunistas brasileiros não tenham a sua capacidade e sua experiência, e fiquem enchendo suas colunas com mentiras e preconceitos, mais evidentes em O Globo.
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