O Globo
Começou, à sombra da noite, nas primeiras
horas de 6 de agosto. Ninguém sabia — nem as tropas mecanizadas envolvidas na
operação, que receberam o aviso no último minuto, nem os Estados
Unidos e os aliados europeus. As forças de elite da Ucrânia, cerca
de 10 mil soldados, avançaram sobre a província russa de Kursk e, em duas
semanas, ocuparam um saliente de mais de mil quilômetros quadrados e 92
povoados, inclusive a cidade de Sudja.
A ofensiva surpreendente foi descrita por analistas em termos que oscilam entre uma genial manobra tática e uma aventura desesperada. A operação tem uma série de objetivos que podem ser rotulados como propagandísticos, militares e diplomáticos.
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Desde o fracasso da ofensiva ucraniana do
verão de 2023, o conflito sedimentou-se como guerra de atrito ao longo de um
extenso front no leste e no sul ucranianos. O atrito de artilharia pesada, com
os incessantes bombardeios de mísseis e drones russos sobre cidades da Ucrânia,
configurou uma narrativa de inevitabilidade de triunfo russo no horizonte de
longo prazo. A ofensiva em Kursk desfigurou a narrativa predominante.
Pela primeira vez desde a Segunda Guerra
Mundial, forças militares estrangeiras invadiram território russo. O choque,
expresso na evacuação de mais de 100 mil civis, desafia a retórica de Putin. O
ditador proibiu o uso da palavra “guerra” na Rússia, substituída pelo
eufemismo “operação militar especial”, e, temendo a quebra da coesão social no
país, recusa-se até hoje a ordenar uma mobilização geral. A guerra, contudo,
chegou a solo russo, expondo a fantasia do Kremlin.
Putin segue manufaturando eufemismos. A
invasão ucraniana é descrita como “provocação” ou “atos de terrorismo”. Mas o
rei, que ficou nu, foi obrigado a atribuir ao “Ocidente coletivo” a humilhação
imposta pela Ucrânia.
Tática militar
São duas as metas militares da ofensiva em
Kursk. De um lado, como mínimo, a Ucrânia almeja obrigar a Rússia a desviar
suas forças que operam no Donbass para o novo front de Kursk. De outro, como
máximo, imagina estabelecer uma zona-tampão dentro da Rússia, que protegeria a
região ucraniana de Sumy.
A primeira meta ainda não foi alcançada. A
Rússia enviou tropas secundárias para estabilizar o cenário no saliente
invadido, sem comprometer suas melhores forças. O Kremlin faz de tudo para não
desistir de seu esforço principal, o avanço acelerado na província de Donetsk
antes da chegada do inverno.
A segunda meta depende da capacidade
ucraniana de implantar linhas de defesa no saliente conquistado. Já existem
sinais do estabelecimento de trincheiras e fortificações. A tentativa envolve
riscos significativos, expondo as forças ucranianas à retaliação aérea russa. A
distância entre manobra tática e aventura desesperada estreita-se com a
passagem do tempo.
Desafio diplomático
O presidente ucraniano Zelensky aludiu à
ideia de usar o saliente de Kursk como moeda de troca em hipotéticas
negociações de paz. É pura especulação, destinada a ocultar uma operação
diplomática sofisticada cujo alvo é o governo Biden.
Os Estados Unidos, principal fornecedor de
equipamento bélico à Ucrânia, adotam uma política de “administração da guerra”,
postergando a entrega de sistemas avançados de artilharia, mísseis antimísseis
e aviões de combate. O blefe russo, expresso nas ameaças periódicas de escalada
nuclear, definiu a hesitante postura estratégica do governo Biden.
Uma “linha vermelha” imposta por Washington é
a proibição do uso de sistemas americanos contra alvos em território russo. O
veto foi parcialmente flexibilizado diante da tática russa de usar o território
do país como santuário para artilharia de longa distância e bombardeios de
mísseis e drones. Hoje Washington permite atingir alvos na Rússia — mas apenas
como “contrafogo”.
A invasão do saliente de Kursk, em que foram
utilizadas armas americanas, ultrapassou a “linha vermelha” e criou um dilema
para Biden. A Ucrânia está dizendo que a ofensiva é parte integral de uma
guerra defensiva, algo óbvio para qualquer oficial militar. Como responderá o
governo dos Estados Unidos?
2 comentários:
Muito bom. Biden, assim como todo o Ocidente, é um frouxo que rifou a Ucrania. Já passou da hora de enfrentar a Russia e eliminar o Irã. MAM
O ser humano fazendo guerra é coisa que eu não entendo.
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