terça-feira, 13 de agosto de 2019

Joel Pinheiro da Fonseca*: Divórcio inevitável

- Folha de S. Paulo

O fim do casamento de bolsonarismo e lavajatismo, imbatível em 2018, cobrará seu preço

Um dos feitos mais incríveis de Bolsonaro ao longo dos últimos anos foi a construção de sua imagem como a de um político implacável com a corrupção. Logo ele, um deputado que em 28 anos de Congresso encarnou quase o tipo ideal da velha classe política fisiológica brasileira.

Agora, o abismo entre imagem e realidade começa a aparecer. Em sete meses de governo, Bolsonaro já mostra que, quando o alvo é ele, sua família ou seus aliados, fará de tudo para abafar qualquer investigação.

Recentemente, Alexandre de Moraes suspendeu investigações da Receita Federal que incluíam ministros do Supremo Tribunal Federal. Independente do mérito da decisão, era a ocasião perfeita para o presidente da República colocar a boca no trombone e denunciar o STF em mais um de seus corriqueiros ataques às demais instituições do país.

Dessa vez, no entanto, não o fez. Sinal dos novos tempos? Ele foi, afinal, beneficiado por decisão recente de Dias Toffoli de suspender o uso de dados do Coaf sem autorização judicial, em resposta ao pedido de Flávio Bolsonaro.

Há uma lógica aí. Inicialmente, o Coaf era a menina dos olhos do presidente, a ser transferido para os cuidados diretos do superministro Moro. Daí vieram as descobertas sobre o gabinete “enrolado” de Flávio, os pagamentos de Queiroz.

Então o Coaf virou moeda de troca barata com o Congresso, que exigia que ficasse no Ministério da Economia. Veio a decisão de Toffoli, neutralizando muito de seu poder. Pela grave falta de ter defendido a atuação da instituição que preside, o presidente do Coaf, Roberto Leonel —indicado por Moro— está na lista de possíveis demissões do governo.

E o presidente já estuda transferir o Coaf para o Banco Central, no que foi prontamente elogiado por Dias Toffoli. Entre Moro e Toffoli, sabemos de que lado Bolsonaro está.

Em outra frente, tendo que escolher o próximo procurador-geral da República, Bolsonaro tem de lidar com um pedido insistente de seu público: que nomeie Deltan Dallagnol.

É claro que, para alguém que preze um Ministério Público respeitoso do processo legal, a nomeação de Deltan para a PGR ficou no mínimo questionável à luz da Vaza Jato.

Para o discurso que Bolsonaro vende a seus seguidores, contudo, os vazamentos não prejudicam em nada a imagem do procurador.

Pelo contrário: mostram alguém disposto a fazer o que for preciso para prender os corruptos. Pela lógica do discurso, Deltan seria o PGR ideal.

E, no entanto, Bolsonaro se distancia dele. E mais: o ataca. Deltan é “um esquerdista estilo PSOL”, diz um texto compartilhado pelo perfil oficial do presidente. Alguém acredita nisso?

O real problema é que Deltan seria —seja por convicção sincera, vaidade ou projeto político— uma pedra no sapato para abafar os casos de corrupção na família do presidente.

A saída é apelar para os tais valores de direita, que servem como um excelente pretexto para chutar para escanteio a luta anticorrupção.

O casamento do bolsonarismo com o lavajatismo (a ideologia de que tudo vale na caçada aos corruptos que dominam a política) provou-se imbatível ano passado.

O divórcio dos dois cobrará seu preço: será um duro teste de realidade para aqueles que viam em Jair Bolsonaro o paladino da caça aos corruptos. Queiroz, esteja onde estiver, deve estar rindo à toa.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.

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