- Valor Econômico
Forças de oposição que não conseguem romper com o "legado" do populismo. Parece ter sido o caso de Macri
Um amigo argentino, legítimo portenho, costumava dizer que os problemas econômicos e sociais do país começaram quando Juan Domingo Perón subiu ao poder pela primeira vez, em 1946. Desde então, o peronismo - caracterizado por um arraigado populismo nacionalista - criou raízes profundas no sistema político do país e mantém-se, 73 anos depois, como uma expressiva força sustentada pelo engajamento, não raro beligerante, de inúmeros sindicatos e organizações civis. Pode-se dizer que os argentinos não têm apenas boa memória, mas persistem em transformar o presente no passado.
Contudo, também pode ser dito que a perpetuação do peronismo ao longo da história tem sido muitas vezes facilitada pelo comportamento das forças de oposição que não conseguem romper com o "legado" do populismo. Parece ter sido o caso de Mauricio Macri. Nas eleições primárias realizadas no domingo ele colheu os frutos de uma administração marcada pelo comportamento dúbio. Liberal por convicção e formação, Macri recorreu às mesmas práticas populistas do peronismo e acabou por criar confusão na cabeça de seus eleitores.
O congelamento de preços e tarifas - abrangendo produtos de alimentação básica, tarifas de gás, energia elétrica e de transporte público, entre outros tipos de "benesses" populares -, instituído em abril deste ano para durar por seis meses (até as eleições) descaracterizou o governo, que não conseguiu tirar votos do peronismo e, ainda, pode ter perdido apoio de parte do eleitorado de tendência mais conservadora.
O expediente de utilizar o controle de preços para segurar a inflação é comum na Argentina. Foi usado à larga no último governo de Cristina Kirchner. Os subsídios distribuídos às classes de renda mais baixa aprofundaram o desequilíbrio dos preços relativos da economia e obrigaram Macri a recorrer à ajuda do FMI no rastro da crise cambial de março do ano passado, quando o país perdeu US$ 8 bilhões de reservas internacionais em pouco tempo.
A deterioração chegou a tal ponto, que não havia alternativa: era o FMI ou o "default" dos compromissos externos do país. No caso da Argentina, as dificuldades econômicas costumam ser mais agravadas pela preferência da população em manter suas economias em dólar, desde o mais remediado dos cidadãos até altos executivos da classe média. Qualquer movimento de desvalorização do peso acende logo o sinal de que a taxa de câmbio pode piorar e isso desencadeia uma "corrida" à compra da divisa estrangeira, facilmente adquirida em qualquer esquina das maiores cidades do país. O comportamento gera um ciclo vicioso e coloca o governo contra a parede não apenas no campo econômico, mas também na esfera política.
Em junho de 2018, ao anunciar o programa de ajuste acertado com o FMI - no valor de US$ 50 bilhões, acrescido de US$ 7 bilhões três meses depois diante da elevada demanda por dólar - Macri pensou que estava resolvendo um problema, mas, a rigor, criou outro. A ida ao Fundo alimentou a percepção de que o governo não era capaz de resolver os problemas econômicos que se acumulavam desde a administração anterior. E o dólar disparou por um bom tempo no ano passado até que o Banco Central voltou a ter controle sobre a política cambial, às custas de elevadas taxas de juros, que chegaram ao patamar de 70% ao ano. Ontem, em meio à crise detonada com a grande vantagem de quinze pontos do candidato peronista Alberto Fernández sobre Macri, o dólar disparou no mercado varejista (venda ao público), chegando a valer 61 pesos.
Também o dólar comercializado entre os bancos e grandes empresas sofreu uma alta expressiva e obrigou o Banco Central da Argentina a desovar adicionalmente, além das operações previamente programadas, cerca de US$ 100 milhões das reservas internacionais e a puxar os juros para 74%. Isso resultou em uma tímida queda do dólar, que recuou a 58 pesos no varejo.
Há muito tempo os indicadores econômicos do país são ruins. Em 2018, a inflação chegou a 47,6%, a mais alta desde 1991 - quando o Plano Cavallo estabilizou o comportamento dos preços por meio da conversibilidade dos pesos atrelada às reservas internacionais do país - e não se espera que arrefeça muito este ano. O PIB tem sofrido significativas perdas nos últimos anos, contribuindo para o aumento do desemprego, a queda do consumo e o desânimo dos investidores. No ano passado, o PIB caiu 2,5%. Para este ano, o FMI prevê queda de 1,3%.
Depois da Venezuela, cujos números são incomparáveis, a Argentina é o país que tem hoje o pior desempenho na América Latina. Qualquer previsão para 2020 passa agora a ser ainda mais incerta diante do resultado das eleições primárias de domingo.
O susto do mercado com a perspectiva de que a volta do peronismo ao poder venha a ser consagrada no primeiro turno das eleições, previsto para 27 de outubro, pode aprofundar-se nas próximas semanas. Tudo vai depender do comportamento do governo Macri, de um lado, e de Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner, sua companheira de chapa, de outro. No médio prazo, a se confirmar o resultado das primárias, o destino da Argentina será mais uma vez guiado pelo espírito de Perón, com a perspectiva de sedimentar ainda mais as práticas do passado no presente.
Um cenário cruel poderia então ser projetado, a ser verdadeiro o vaticínio feito por Macri durante a campanha no sentido de que esta eleição "influenciará os próximos 30 anos na Argentina".
Do ponto de vista do Brasil, uma vitória da dupla Fernández - Fernández pode complicar os planos conjuntos que vinham sendo desenhados em entendimento com Macri, incluindo os interesses com relação ao acordo do Mercosul com a União Europeia (UE). Portanto, o desgosto do presidente Jair Bolsonaro com a perspectiva de um governo peronista no país vizinho a partir de dezembro é perfeitamente compreensível. O que talvez seja difícil de entender é a manifesta torcida de Bolsonaro pela reeleição do colega, sabendo-se que isso pode comprometer a imagem de Macri, com efeito negativo sobre a decisão do eleitorado argentino.
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