Graciliano (retradado por Candido Portinari) |
'Garranchos',
coletânea de textos nunca publicados em livro, e a nova edição de 'O Velho
Graça', de Dênis de Moraes, iluminam o percurso estilístico e a vida do
alagoano Graciliano Ramos (1892-1953)
A
comemoração dos 120 anos de nascimento do escritor alagoano Graciliano Ramos
(1892-1953), no dia 27 deste mês, começa na próxima semana com dois lançamentos
de livros e um seminário em São Paulo, Belo Horizonte e no Recife, patrocinado
pela Editora Record, que publica suas obras. Homenageado principal da Festa
Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2013, que ainda não fechou a
programação dedicada ao autor, Graciliano é lembrado pela Record com 81 textos
inéditos em livro no volume Garranchos, que será lançado dia 23, no Masp, na
abertura do seminário promovido pela Record (leia programação nesta página).
Simultaneamente, a editora Boitempo coloca nas livrarias a nova versão (com
acréscimos) da biografia O Velho Graça, originalmente publicada há 20 anos pelo
professor de literatura Dênis de Moraes. Como bônus, o livro traz uma rara
entrevista do escritor ao jornalista Newton Rodrigues, publicada uma única vez,
em 1944, na extinta revista carioca Renovação, e reproduzida com exclusividade
pelo Sabático (veja trecho na página ao lado e a íntegra no site do jornal).
Graciliano era avesso a entrevistas. Em pleno Estado Novo, Newton Rodrigues
(1919-2005), que foi colunista do Estado entre 1991 e 1994, conseguiu dele
declarações surpreendentes. Usando o pseudônimo Ernesto Luiz Maia, Rodrigues
começou sua carreira jornalística com uma conversa franca, no momento em que
Graciliano trabalhava no manuscrito de Infância, publicado em 1945. Como membro
do Partido Comunista do Brasil (depois Brasileiro), Rodrigues queria saber do
escritor a razão da "falta de penetração de autores sérios na massa".
Graciliano, que se filiou ao Partidão um ano depois, respondeu: "A massa é
'muito nebulosa'". E os escritores, segundo o velho Graça, não constituem
uma classe, como sugeriu o entrevistador. "Eles estão numa classe, que não
é, evidentemente, a operária." Consequentemente, conclui o escritor, os
autores seriam incapazes de saber o que a massa quer ler - e, na época, eram os
folhetins, antes que as novelas da televisão viessem a ocupar o imaginário
popular.
Ele volta a falar da "massa" no inédito Garranchos, organizado por
Thiago Mio Salla, doutor em Comunicação Social pela USP e autor de uma tese
sobre Graciliano. Entre os textos do livro, o jornalista selecionou uma
palestra sobre o tema, feita em 1947. Nela, o escritor, então já filiado ao
PCB, define o livro como um "objeto mais ou menos inútil à massa".
Literatura ao alcance do povão? O livro "está perto, à mão, na
vitrine", diz ele. "Agora esperemos que o homem do povo se
mexa." E pague pelo livro, pois os escritores, arremata Graciliano,
"não vivem no éter" - e ele fala assim, sem medir palavras, numa
palestra da campanha promovida pelo Partidão para estimular a venda de obras de
orientação comunista.
Em outras ocasiões, o escritor mediu-as com régua em punho, cortando com ela
parágrafos inteiros, não propriamente atrás da "mot juste" - da
palavra exata - de Flaubert, mas do pensamento enxuto, direto. Garranchos, no
entanto, vale menos pelos textos e mais pela sinceridade de Graciliano. Muitos
dos escritos assinados com pseudônimos - antes de Graça usar a régua - não
estão à altura do autor que viria a publicar clássicos da literatura brasileira
(Caetés, São Bernardo, Angústia, Vidas Secas, relançados em box pela Record).
Em contrapartida, o organizador Mio Salla confere a Garranchos o mérito de
permitir ao leitor acompanhar a "evolução estilística" de um autor que,
ao experimentar diversos gêneros (crônica, poesia, conto, ensaio político),
encontrou seu nicho quando abandonou seus pseudônimos. E eram vários, de J.
Calisto a Anastácio Anacleto.
As crônicas mais antigas, dos anos 1910, elegem temas um tanto bizarros, como a
falta de mulheres na Terra do Fogo (em 1915). Os contos são melhores - e um
exemplo disso é O Ladrão, escrito no mesmo ano, quando Graciliano trabalhava
como revisor, no Rio. O conto fala de um homem que, numa noite fria, rouba um
armazém, tropeça na lama e é acossado pela matula selvagem, que lincha o pobre
diabo com a ajuda do sacristão da cidade. O tema do larápio amador, capturado
pela massa, voltaria 20 anos depois numa narrativa mais amarrada e crítica
sobre a suspeita moral da sociedade burguesa (Um Ladrão).
A segunda parte de Garranchos reúne textos produzidos nos anos 1920, quando
Graciliano retoma seu lugar no provinciano O Índio, jornal da alagoana Palmeira
dos Índios, cidade para onde voltou em setembro de 1915, tornando-se, em 1927, o
mais rigoroso e honesto prefeito do município, que governou até renunciar, em
1930. Ele começou a escrever no periódico em 1921, assinando três seções, entre
as quais Garranchos, que dá título ao livro. Já no primeiro
"garrancho", ele pergunta ao leitor se sofre de insônia. Sofre?
"Então não usará melhor narcótico", garante. Mas estava errado. No
sétimo, ele desperta o leitor aos gritos com o relato de um crime real e
monstruoso, o de um garoto de 11 anos que mata a golpes de enxada o coleguinha
de 13. Além de vociferar contra assassinos precoces, faz militância ecológica
pelo plantio de árvores em Palmeira dos Índios e impreca contra o analfabetismo
que assola a cidade.
Os textos começam a melhorar quando Graciliano parte para Maceió, nos anos
1930, e começa a colaborar (com pseudônimo) no Jornal de Alagoas. É lá que
virou grande amigo de José Lins do Rego, promovendo o romance regionalista. Há,
em Garranchos, uma notável provocação ao crítico modernista Prudente de Moraes
Neto (1904-1977). Graciliano escreve que Lins do Rego "não precisa
recorrer ao pitoresco para dar vida às suas criações", espetando os filhos
da Semana de 22.
Não satisfeito, retrocede no tempo e compara o autor de Menino do Engenho a
Machado de Assis, justificando que a obra do amigo tem coesão, enquanto os
livros do último estariam cheios de "enxertos". O escritor implicava
com o bruxo de Cosme Velho. Na biografia O Velho Graça, Dênis de Moraes conta
um episódio incômodo para um autor que se pretendia progressista e livre de
preconceitos. Graça, que "gostava de escandalizar o interlocutor",
segundo o biógrafo, deu ao amigo Aurélio Buarque de Holanda, em dois dias, duas
avaliações opostas de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Na primeira, usou o
adjetivo "formidável". Na segunda, disse que era uma
"porcaria", obra de um "negro burro, metido a inglês, a fazer
umas gracinhas chocas".
O que distanciava Graciliano de Machado era principalmente a crença do alagoano
em seu primeiro mandamento literário. Um escritor, dizia, "tem o dever de
refletir sua época e iluminá-la ao mesmo tempo". Machado, acrescentou,
"não foi assim". Mesmo antipatizando com o autor, Graciliano acabou
elegendo Dom Casmurro entre os dez melhores romances brasileiros numa lista
feita para a Revista Acadêmica. Shakespeare, numa outra conversa com Aurélio,
também levou bordoadas, por ter criado Hamlet, "aquele personagem sem
lógica e absurdo". O biógrafo Dênis de Moraes, diante de tantas
provocações, conseguiu resgatar cinco entrevistas esclarecedoras sobre suas opiniões
contraditórias e episódios anedóticos - entre eles o do encontro casual com
Getúlio Vargas, em 1937, na deserta rua Barão do Flamengo. O presidente dava
suas voltas antes de dormir e cumprimentou o escritor com um "boa
noite", para receber de voltar o silêncio de desprezo de quem havia sido
preso como subversivo pelo ditador. "Quem contou foi Antonio Carlos
Villaça", diz Moraes.
Sorte de Getúlio que o velho Graça ficou em silêncio. Poderia ser pior. De
acordo com o biógrafo, "ele costumava soltar palavrões em ocasiões
impróprias". Apesar da boca suja, só saía à rua de terno (tinha 12, todos
parecidos) e gravata, colarinho engomado e sapatos cuidadosamente examinados
com um pano em sua parte interna (talvez pelo trauma de ter caminhado uma
semana com um prego a lhe espetar o calcanhar sem se dar conta). Era uma de
suas manias, além de fumar quatro maços de cigarros por dia e lavar as mãos
mais vezes do que o bilionário Howard Hughes, vítima de misofobia. Talvez o
contato com germes do passado explique a higienização. Nos anos 1940, sem
dinheiro, numa época em que o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda)
recrutava intelectuais para escrever na revista Cultura Política, Graciliano
cedeu ao Estado Novo e trabalhou como revisor da publicação.
O escritor era contra transformar a literatura em instrumento de propaganda
política. Tinha aversão ao romance panfletário e à interferência partidária na
atividade dos literatos. O romance social da geração dos anos 1930 não atingiu
as massas , disse na entrevista a Newton Rodrigues. "Mesmo em seu melhor
livro, Memórias do Cárcere, ele não se coloca como ideólogo ou libertário, mas
como autor de uma obra comprometida com a condição humana", sustenta seu
biógrafo.
A última parte de Garranchos, coletânea de artigos, discursos e manifestos de
Graciliano escritos após sua filiação ao Partido Comunista do Brasil, é uma
prova de sua independência como autor. O organizador do livro chama a atenção
para uma crônica que ele escreveu sobre o líder comunista Luís Carlos Prestes,
em janeiro de 1949, no jornal Classe Operária, na qual o escritor deixa o mito
de lado para tratar do homem. "Resolvi escrever minha tese justamente para
entender como um escritor que havia sido preso pelo regime de Vargas passou a
colaborar com uma revista patrocinada pelo Estado Novo", conta Mio Salla.
Ele descobriu que, apesar do cunho político e partidário de seus discursos, até
neles Graciliano elaborava frases com o cuidado dos relatórios enviados ao
governador de Alagoas, que tanto impressionaram Augusto Schmidt em 1929.
O acadêmico, em suas pesquisas, acabou localizando não só os textos que
Graciliano assinou com pseudônimos como 30 entrevistas suas que pretende editar
no próximo ano, quando serão lembrados os 50 anos da morte do escritor (no dia
20 de março). Elas serão publicadas pela Record, a mesma que agora lança
Garranchos.
Fonte:
Sabático/O Estado de S. Paulo
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