Em 6 de janeiro de 1963, o País retomava o presidencialismo como sistema de governo depois de um interregno parlamentarista que vigorou a partir de setembro de 1961. Caía por terra a curta e única experiência parlamentarista da república brasileira.
Para alguns, o parlamentarismo instituído em 1961 foi um golpe que atendia a uma demanda militar para impedir a posse de João Goulart na Presidência. Para outros, foi um arranjo conciliatório para evitar que o País entrasse em guerra civil. As duas versões não são excludentes e ambas se valem de argumentos convincentes. Elas têm em comum o fato inconteste de que naqueles anos a opinião dos militares dava o norte da política brasileira. Os militares, embora não fossem um bloco coeso, atuavam com argumentos na mídia e nos partidos e com armas nos quartéis e nas ruas. Eram veto players em todos os níveis da política nacional.
De fato, nos dias entre a saída de Jânio e a posse de Goulart, embora houvesse um presidente interino e constitucional, o deputado Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, o poder efetivo era de uma junta militar formada pelos ministros das Forças Armadas: general Odílio Denis, da Guerra-brigadeiro Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica; e almirante Sílvio Heck, da Marinha.
João Goulart era considerado, por grande parte da sociedade política e empresarial e dos militares, uma figura comprometida com o sindicalismo de trabalhadores e com a esquerda. Em pleno clima de guerra fria, o parlamentarismo veio como um arremedo para impedir a ruptura institucional, para permitir que o País, apesar de tudo, continuasse tendo governo. Costurado de afogadilho, não chegou a ter legitimidade. Foi um parlamentarismo cujos primeiros-ministros — os chefes do Conselho de Ministros -tiveram por função principal eliminar o próprio parlamentarismo.
A fase parlamentarista de Goulart foi a de um governo a vir a ser, em transição para outra etapa nos poderes presidenciais. Era, fundamentalmente, um governo altamente mobilizado com apoio e críticas de sindicatos, da imprensa, dos militares, dos empresários, da igreja, dos estudantes. Sua meta imediata era restaurar o presidencialismo. Esses foram tempos de grande eficiência mobilizatória das lideranças políticas, sindicais e militares de todos os matizes.
Nos 16 meses de parlamentarismo existiram três gabinetes cujos primeiros ministros foram: Tancredo Neves, Brochado da Rocha, este por apenas dois meses, e Hermes Lima. Isso demonstrava instabilidade política com fortes impactos na economia. Ao mesmo tempo era evidente a ingerência política do presidente no Conselho de Ministros e a oposição firme do Congresso contra as reformas, especialmente quando envolviam interesses agrários.
O debate ideológico exacerbado não se deu, contudo, motivado pelo sistema de governo recém-adotado, mas especialmente pelas propostas reformistas do presidente e de seus apoiadores. Para alguns, com mais poderes seriam maiores as chances de o governo Goulart levar a cabo seu rol de reformas de base: agrária, bancária, fiscal, urbana, eleitoral e educacional.
O retorno ao presidencialismo acabou ganhando apoio de vários governadores e políticos importantes interessados em concorrer na eleição presidencial de 1965, entre eles Juscelino Kubitschek. Teve ainda adesão da grande imprensa, dos sindicatos de trabalhadores e dos empresários. Paradoxalmente, a retomada do presidencialismo tornou-se quase unanimidade. O que desestabilizava a política era a crise de confiança em relação a João Goulart. Em setembro de 1962, o referendo foi convocado para início de janeiro de 1963 e a tese presidencialista obteve ampla vitória: dos cerca de 18 milhões de eleitores da época, 12 milhões compareceram à votação e, desses, 9,5 milhões votaram pelo retorno do presidencialismo.
O que concluir desse episódio? Em primeiro lugar, temos uma questão semântica. Um referendo ficou conhecido para a história como plebiscito, termo forte que dava mais legitimidade à consulta popular, a consulta à "plebe" tão fortemente cortejada por todas as lideranças.
Em segundo, a força que a simbologia de nosso presidencialismo imperial ganhou desde os primeiros anos da República. Vitória similar foi obtida no plebiscito de 1993. Nesse ano, com uma abstenção de 25,7%, compareceram às urnas 67 milhões de eleitores dos quais 37 milhões votaram pelo regime presidencialista, 16,5 milhões contra e quase 10 milhões anularam o voto.
Em terceiro, o fato de que os principais grupos políticos e militares que demandavam o retorno do presidencialismo conspiravam contra Jango. Para o general Cordeiro de Farias, a vitória do plebiscito foi a senha para o ato final que interrompeu o ensaio da democracia liberal de 1946. Foi a chancela para o golpe de 1964. O problema, pois, era derrotar Jango, derrotar propostas que, bem ou mal encaminhadas, enunciavam reformas importantes na sociedade brasileira que ainda estão por vir.
Finalmente, decorridos esses 50 anos que nos separam daquele evento que restabeleceu o presidencialismo, verifica-se hoje uma novidade a ser celebrada: a desmilitarização dos destinos políticos do País.
Maria Celina D’Araujo, doutora em Ciência Política, é professora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio. Foi professora e pesquisadora do CPDOC/FGV, é autora de A elite dirigente do governo Lula (FGV)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
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