segunda-feira, 6 de julho de 2015

José de Souza Martins - Pedaladas políticas

- O Estado de S. Paulo / Aliás

• Festa pela ciclovia mostra o contramovimento da Prefeitura tentando reocupar o espaço do protesto social

A compreensivelmente carnavalesca inauguração da ciclovia da Avenida Paulista cobre mais do que o canteiro central da histórica e emblemática rua de São Paulo. Cobre largo período de mudanças na concepção paulistana do urbano e das funções das ruas e avenidas na vida cotidiana de uma cidade que tem passado por transformações mais ou menos abruptas. A Paulista surgiu há mais de um século, concebida e planejada pelo uruguaio Joaquim Eugênio de Lima, aberta em seguida à abolição da escravatura, quando os primeiros bondes puxados a burro substituíam cadeirinhas e redes carregadas no ombro de escravos. A Paulista foi o lugar que anunciou um novo modo de morar, de viver e de pensar, uma nova vida doméstica e familiar, de gente muito rica servida não mais por mucamas, mas por serviçais que até falavam francês. Em muitas dessas casas, francês era a língua da conversação cotidiana. O sotaque da Paulista era o da nova Pauliceia e do novo Brasil.

O espigão do Caaguaçu fora escolhido para a nova rua e o novo bairro porque se acreditava que os lugares altos eram sadios, arejados pela brisa permanente, o oposto dos baixios do Tamanduateí e do Anhangabaú insalubres pelos miasmas doentios. A cidade era agora republicana e parecia ter um plano, o da ordem e do progresso, na saúde pública e na saúde política. Não por acaso, numa ponta da Paulista se concentrariam os grandes hospitais e na outra os cemitérios - o do Araçá, o do Redentor e o do Santíssimo Sacramento, mais tarde o São Paulo. Era para tirar os enterros do centro. Tudo muito higiênico e funcional, até socialmente no dito popular alegórico de duplo sentido: “A Avenida Paulista é que nem casamento: começa no Paraíso e termina na Consolação”.

Mas não é de hoje que a Paulista atrai a multidão, como nessa inauguração da ciclovia. Tornou-se uma espécie de palco do imaginário do povo. Ficaram famosos os corsos carnavalescos já nos anos 1910, até com suas tragédias de bastidor, como a que culminaria na navalhada no rosto da mais bela cortesã de São Paulo, Nenê Romano, em 1918, ordenada por uma noiva enciumada. Nenê seria assassinada em 1923 pelo advogado e amante, Moacyr Piza, poeta e boêmio.

Já em 1917, o povão tentara invadir a Paulista para uma demonstração política na frente da casa do secretário da Justiça, quando conduzia ao Araçá o caixão do operário José Martinez, ferido e morto a tiros pela Força Pública, na frente da Tecelagem Mariângela, do Brás, durante a greve geral. Policiais de armas embaladas impediram a demonstração.

Tornou-se comum que operários, nos domingos, levassem a família de bonde até a Paulista para ver os palacetes dos ricaços para os quais trabalhavam. Mas também porque a avenida era lindíssima, com os jardins das residências, como ainda se vê na Casa das Rosas, e o Parque Siqueira Campos, resto de Mata Atlântica sobrevivendo dentro da cidade. O palacete do conde Matarazzo era o preferido. Seus operários vinham do Brás, da Mooca, do Belenzinho, da Água Branca, de São Caetano, com a roupa de missa. Postavam-se do lado de lá da rua para mostrar à esposa e aos filhos o monumento da riqueza que seu trabalho ajudara a construir. Não raro para dizer-lhes que Matarazzo era imigrante, viera com uma mão atrás e outra na frente, trabalhara muito, comera pão com banana até se tornar o homem mais rico do Brasil. Era lenda, que o próprio Matarazzo difundia. Mas o proletariado gostava e se via nela.

Não menos carnavalescos os efeitos de rua do casamento de uma das netas do Conde, em 1945. A multidão acorreu à calçada fronteira, do outro lado, para ver os convidados chegarem para a festa de mais de um dia, gente de poder e de dinheiro. A guerra mal havia acabado. Ainda se padecia o racionamento do pão, as filas para comprá-lo, mas ali não havia racionamento algum. Melhor ver a abundância do outro do que a escassez própria. Era o desfile das grandes contradições sociais no espetáculo do conformismo de um fim de era.

O enredo dos espetáculos da Paulista mudou após o regime militar. Ganhou conotação política, a avenida passou a abrigar, também, o protesto social. Ainda que misturando temas não necessariamente convergentes, os protestos da Paulista vão hoje da afirmação de identidades, como no caso da Parada Gay, à reivindicação de direitos, como nos casos dos protestos sindicais. O advento da multidão como novo sujeito da realidade urbana do País, encontrou na Paulista o cenário sobrante da escassez de espaços para demonstrações públicas na cidade. Algo inerente ao que é próprio das metrópoles modernas não tem aqui o lugar adequado para a teatralidade política. A ocupação da Paulista por diferentes multidões inventa o novo cenário da política. Assim como diversos sujeitos do povo a ocupam para reivindicar, protestar e afirmar o que é basicamente a sociedade contra o Estado, a inauguração festiva da necessária ciclovia mostra o contramovimento do governo municipal tentando reocupar e dominar o espaço do protesto social.

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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, autor de Uma sociologia da vida cotidiana (Contexto)

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