quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Carlos Alberto Sardenberg - Ilegalidade permitida

- O Globo

Pode parecer coisa pequena neste momento de grandes crises, mas serve para demonstrar um padrão de estímulo à ilegalidade. Seguinte: de cada dez motoristas já apanhados dirigindo bêbados, seis continuam por aí guiando seus carros e com a carteira de habilitação na mão. Tudo dentro da lei. Isso foi medido em São Paulo, mas pode apostar que o padrão se repete pelo país.

Reparem agora em ambiente, digamos, mais importante, Brasília. O senador Ivo Cassol (PP-RO) está condenado no Supremo Tribunal Federal desde 2013, por fraude em licitações, crime cometido entre 1998 e 2002, quando ele era prefeito de Rolim de Moura. Se quiserem encontrar Cassol, podem procurar no seu gabinete no Senado. Ele está dentro da lei.

Nos dois casos, os recursos garantem a permanência legal da ilegalidade.

Apanhando bêbado, o motorista recebe uma multa, da qual pode recorrer em três instâncias. Se perder em todas, tendo, portanto, a multa confirmada, e se cometer outras infrações, chegando aos 20 pontos, ainda assim não perde a carteira. Tem direito a mais três recursos. E segue por aí, barbarizando com carteira em ordem.

Cassol foi o primeiro senador condenado no STF desde a vigência da Constituição de 88. Foi recentemente condenado outra vez, na Justiça Federal, por improbidade administrativa. Tudo somado, são quatro anos e oito meses de cadeia, mais cerca de R$ 2 milhões entre multas e dinheiro que deve devolver. Deveria. Tem recurso pendente no STF. A reparar: ilícitos, na sentença do tribunal, cometidos há 13 anos, condenado há dois e, tudo bem, continua ativo no Senado.

Entre suas recentes tarefas, aliás, relata um pedido de investigação de contratos da Procuradoria-Geral da República, apresentado pelo seu colega Fernando Collor.

Diante disso, qual o problema de dirigir bêbado? Ou ainda, qual o problema se os presidentes da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e do Senado, Renan Calheiros, são oficialmente investigados no STF, no âmbito da Lava-Jato, e continuam no cargo?

Nos Estados Unidos, o sujeito apanhado dirigindo bêbado vai para a cadeia, de lá para o juiz, já recebe a pena e perde a carteira. Pode recorrer, mas fica sem o documento. Aqui, vai para a delegacia, assopra o bafômetro, se quiser, e vai para casa. Se bobear, dirigindo o seu carro.

(Um amigo meu, homem honesto, tomou os 20 pontos. Em vez de recorrer, deixou o carro em casa e foi se matricular em um curso de direção, condição legal para reaver a habilitação. A atendente deu o preço e informou que incluía estacionamento. Ele estranhou: mas é um curso para quem perdeu a carteira! E ela: ora doutor...).

Em países eticamente mais desenvolvidos, como no Japão, o político, quando denunciado de maneira maios ou menos consistente, mesmo que seja só na imprensa, renuncia e vai se defender. Na Alemanha, um ministro renunciou ao ser acusado de plágio numa tese acadêmica apresentada vários anos antes.

Não vale simplesmente colocar a culpa nos políticos e legisladores. Sim, é fácil mudar o sistema de punições no trânsito. Basta alterar a lei no Congresso Nacional. Mas por que não se toma essa iniciativa? Porque mesmo políticos honestos não gostam de se meter nessas pautas ditas impopulares. Já anistias de multas passam facilmente nas Assembleias Legislativas.

Também são populares as reclamações contra radares. Por isso mesmo, até 2012, a lei determinava que o radar deve ser colocado em lugar visível e com sinalização avisando que o "pardal" está logo adiante. A mensagem: caro motorista, a velocidade máxima aqui é de 100 km/hora, mas você, perdão, o senhor ou a senhora só precisam respeitá-la nos trechos imediatamente anteriores aos radares, convenientemente sinalizados. Mais: no caso de se distrair e for flagrado, fique tranquilo, tem direito a seis recursos.

O Conselho Nacional de Trânsito eliminou a exigência de aviso prévio dos radares, mas há vários projetos de lei no Congresso restabelecendo a sinalização anterior (curiosamente, um desses projetos é do ex-deputado Luís Argolo, preso na Lava-Jato). Em câmaras de vereadores, toda hora aparece um projeto proibindo radares móveis, por exemplo. A Assembleia Legislativa de Santa Catarina foi mais longe: chegou a proibir a instalação de radares de qualquer tipo nas rodovias estaduais.

São coisas pequenas e coisas grandes. O padrão de ilegalidade é o mesmo. Dos "pequenos crimes" chega-se a uma Lava-Jato. O desmonte da grande corrupção deve fazer o caminho inverso e levar o pessoal a perceber que, convenhamos, tem que respeitar a regra, do estacionamento proibido até a licitação de uma plataforma de petróleo.

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