segunda-feira, 13 de julho de 2020

Demétrio Magnoli - A máscara da hipocrisia

- O Globo

Há um governador esperto culpando o povo pelo fracasso do governo

Máscaras são proteções úteis contra a transmissão do vírus em lugares confinados ou em meio a aglomerações. O Congresso aprovou lei que obriga o uso de máscara em todos os locais públicos, inclusive os abertos, onde são inúteis. Bolsonaro vetou trechos da lei sobre lugares fechados, como lojas, templos, escolas e penitenciárias — mas não os que tratam de calçadas, parques ou praias. Os dois atos não têm relação com as necessidades postas pela emergência sanitária. São gestos políticos, no pior sentido da palavra.

A máscara tornou-se símbolo do conjunto de medidas sanitárias adotadas por sociedades que, sem vacinas, preservam a capacidade do sistema de saúde de operar na pandemia. Os vetos presidenciais, destituídos de efeito prático por contrariarem normas estaduais, formam um manifesto da negligência. Inspirado por uma extrema direita mística, Bolsonaro está dizendo que o “vírus chinês”, a “kung-flu”, nas expressões de Trump, é um elemento da conspiração internacional de comunistas e globalistas contra as nações.

Sabe-se que o vírus é transmitido à curta distância por partículas emanadas pela respiração e emissão de sons de infectados. Discute-se, entre especialistas, a hipótese provável de que nuvens microscópicas de partículas permaneçam suspensas no ar por algum tempo, o que reforçaria a utilidade das máscaras e exigiria mudanças na ventilação dos ambientes. Mas o debate mira, apenas, os locais confinados.

O consenso científico assegura que é estatisticamente desprezível a chance de contaminação em lugares abertos, com exceção de aglomerações. Nesses locais, máscaras são contraproducentes pois sofrem manipulação frequente e cobrem-se de sujeira. Mesmo assim, o Congresso resolveu obrigar pedestres, ciclistas e motociclistas a transitarem mascarados. Como o ridículo desconhece fronteiras, máscaras tornaram-se obrigatórias até em trilhas rurais desertas.

A exigência é duplamente punitiva. De um lado, impõe desconforto permanente, que atinge com mais força os trabalhadores envolvidos em longos deslocamentos. De outro, incute a ideia opressiva de que somos, todos, riscos biológicos perenes. Mas, com a lei, os parlamentares preferiram marcar distância frente a Bolsonaro, virando as costas para a vida cotidiana das pessoas comuns. Algo similar foi feito pelo governo separatista catalão, para distinguir a Catalunha da Espanha.

Os governadores alinharam-se à letra da lei votada pelos parlamentares, apressando-se a ameaçar os cidadãos com pesadas multas. No Distrito Federal, o governador bolsonarista Ibaneis Rocha, um dos pioneiros da multa infame, ficou impune quando flagrado de rosto nu em local aberto. Mas, Brasil afora, sob o silêncio cúmplice do Ministério Público, a polícia ganhou o direito de pescar aleatoriamente violadores da norma absurda.

Os países que controlaram a onda inicial da pandemia com rigorosas quarentenas e programas extensivos de testagem nunca impuseram o uso de máscaras em lugares abertos. A imposição da máscara nesses lugares destina-se a mascarar a negligência generalizada das autoridades. As pessoas devem andar mascaradas para disfarçar a ausência de coordenação sanitária nacional, a falta de programas de testagem em massa, o casuísmo na seleção de medidas de flexibilização.

A Flórida, governada por um fiel de Trump, impôs o uso do apetrecho em locais abertos após novo surto provocado por uma reabertura descontrolada. A obrigação da máscara em lugares não confinados é indicador seguro da negligência sanitária oficial. No Brasil, a “rigidez” estadual para chinês ver acompanha, como uma sombra, a displicência explícita, criminosa, do governo federal.

Atrás da máscara, há um governador esperto culpando o povo pelo fracasso do governo. A máscara na praça vazia oculta o templo lotado, que abriu antes da praia. A máscara na face do motoboy encobre os kits de testes estocados, aos milhões, pelos governos estaduais. A máscara no rosto do ciclista dissimula o abandono das favelas sem água potável, esgoto ou sabonete.

A hipocrisia — é isso que a máscara protege.

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