Valor Econômico
Reforma eleitoral merece maior atenção
Em 2008 a prefeitura de Belo Horizonte
realizou uma licitação para a concessão dos serviços de transporte coletivo
para os próximos 20 anos. Entre as regras da disputa, havia uma série de
requisitos técnicos definidos para, supostamente, filtrar apenas as empresas
que possuíssem capacidade financeira e operacional para exercer a atividade com
qualidade e segurança. Mas o diabo mora nos detalhes, como diz o chiste
comumente atribuída ao arquiteto Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969).
O inciso VI do item 8.3.5.1 do edital
estabelecia que, para participar do leilão, os interessados deveriam comprovar
a disponibilidade de imóveis para abrigarem as garagens dos ônibus a serem
utilizados durante a vigência do contrato. O prazo para o atendimento dessa
condição era exíguo (a licitação seria realizada em 60 dias), e dada a escassez
de terrenos numa cidade do porte de Belo Horizonte, poucas empresas apareceram
para o certame. Não por acaso, apenas as concessionárias que já prestavam o
serviço apresentaram propostas - as mesmas que, há três gerações, controlam o
transporte coletivo na capital mineira.
Seja nas licitações públicas ou nos processos seletivos de empresas, os critérios condicionam as escolhas. E na política não é diferente.
Pesquisa CNI/Ibope realizada em março de
2018, no início da campanha eleitoral daquele ano, indicou as características
pessoais mais apreciadas pelos entrevistados em um candidato: ser honesto
(87%), nunca ter se envolvido em casos de corrupção (84%) e transmitir
confiança (82%). Com relação à sua formação e características profissionais,
esperava-se que um aspirante a cargo público conhecesse os problemas do país
(89%), tivesse experiência em assuntos econômicos (77%) e possuísse boa
formação acadêmica (74%).
Eleição após eleição, porém, selecionamos
políticos com perfis muito distantes do desejado pela maioria da sociedade.
Para os pessimistas (realistas, alguns dirão), nossos governantes são o retrato
do nosso povo. Outros, mais fatalistas, dizem que temos os políticos que
merecemos.
Quando se questiona, numa mesa de bar ou em
programas de entrevistas, quais as causas para escolhermos vereadores,
prefeitos, governadores, deputados, senadores e presidentes tão despreparados
para conduzir o país, as respostas em geral apontam para o baixo nível de
escolaridade dos eleitores, as práticas de clientelismo e compra de votos, ou a
obrigatoriedade de votar.
Mas existe uma razão de fundo que explica
melhor a histórica baixa qualidade, na média, dos nossos representantes nos
Poderes Executivo e Legislativo dos três níveis da Federação. As legislações
partidárias e eleitorais conduzem àquilo que, em economia, chamamos de seleção
adversa. Por aqui, a política afasta pessoas bem preparadas e honestas e
permite que o jogo seja controlado por indivíduos em geral sem compromisso com
a coletividade e, não raro, afeitos à corrupção.
A não ser nos municípios muito pequenos,
não é fácil ser eleito para qualquer cargo executivo ou legislativo no Brasil -
e isso não acontece porque os requisitos para tanto sejam elevados. Com dezenas
de partidos, centenas ou milhares de concorrentes e disputas realizadas em
territórios muito grandes ou populosos, não adianta ter bom caráter,
conhecimentos acadêmicos, experiência política ou boas ideias para a comunidade
ou o país; é preciso ser famoso ou ter acesso a dinheiro para fazer-se
conhecido.
Não é por acaso que, se traçarmos um perfil
dos parlamentares e chefes do Poder Executivo em todo o Brasil, a maioria se
enquadra em pelo menos uma das seguintes categorias: I) ocupam-se
profissionalmente da política há décadas, ou são seus herdeiros diretos; II)
têm conexão direta com as cúpulas dos partidos políticos, em geral controladas
pelo grupo anterior; III) são líderes religiosos, sindicais ou, mais
recentemente, militares; IV) detêm uma grande audiência, por serem
celebridades, comunicadores ou influencers ou V) possuem fortes vínculos com
grupos empresariais ou têm condição financeira para bancar suas próprias
campanhas.
Pertencer a alguma das categorias acima não
quer dizer, de maneira alguma, que um político é, a priori, corrupto ou não
trabalha em favor dos interesses da sociedade. O que chama atenção é o fato de
que um cidadão ou cidadã, por melhores que sejam as suas ideias e qualidades,
dificilmente conseguirá se eleger se não for famoso ou tiver fortes vínculos
com as elites partidárias ou econômicas para financiar sua campanha.
Assim como aconteceu na viciada licitação
de ônibus em Belo Horizonte, uma intrincada combinação de regras partidárias,
eleitorais e de financiamento de campanhas constrói uma barreira à entrada na
política brasileira, tão elevada que dificulta sobremaneira a chegada e a
ascensão de quadros de melhor qualidade.
Para piorar, essas condições da disputa são
definidas por aqueles que delas sempre se aproveitaram. E sempre que um fato
externo ameaça sua permanência no poder, tratam de lançar uma nova “reforma
política” que lhes beneficia diretamente. Isso aconteceu em 2017, quando a
proibição das doações de empresas levou à criação do fundão eleitoral, e está
em curso atualmente, pois a cláusula de desempenho e a proibição das coligações
ameaçam a sobrevivência de inúmeros partidos de aluguel e seus caciques.
Nesse cenário, o distritão e inúmeras
outras mudanças nas normas eleitorais em discussão na Câmara dos Deputados
contribuirão ainda mais para a sensação de que nosso sistema político
privilegia a escolha dos piores.
As lideranças empresariais brasileiras
deveriam reagir à reforma eleitoral de Arthur Lira com a mesma força e
virulência com que atacam a tributação de dividendos apresentada por Paulo
Guedes. Caso contrário, não adianta dizer, no futuro, que a culpa é do brasileiro
que não sabe votar.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Um comentário:
Perfeito Carazza,
É isso mesmo. Acrescentaria a mistificação de soluções que fazem os populistas e os historicamente conhecedores das desonestidades na política. Entendo que candidato à Presidência da República ou a Governador precisaria passar, inclusive, por testes de conhecimento da estrutura do Estado e seus limites, da realidade brasileira, entendimentos ilibados da vida (moral pública e privada) e de sanidade mesmo. Deveria apresentar previamente um programa de Governo realista. Pessoas com o perfil das que temos tido por aí na chefia do Estado são as responsáveis pelo fato de o Brasil estar sempre andando para trás. O voto do analfabeto (nas suas diferentes sub categorias) , tudo bem. Mas um analfabeto chegar à chefia do Estado Nacional é outra coisa.
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