Valor Econômico
Gasto social cresceu desde 88, mas Estado
ainda dá mais para ricos
No país a que chamamos de Brasil, levou-se
muito tempo, séculos, para os governantes se preocuparem minimamente com o
desenvolvimento de seu próprio povo, particularmente com a maioria pobre e
majoritariamente negra. No império, os negros eram proibidos de estudar. Depois
da abolição da escravidão, em 1888, a proibição acabou, mas as poucas escolas
construídas localizavam-se longe, muito longe, de onde viviam os negros dos
grandes centros urbanos _ dificultar a mobilidade foi, aliás, um dos principais
expedientes do apartheid sul-africano que tanto chocou o mundo de 1948 a 1991.
Na Ilha de Vera Cruz, o fim da escravidão
como fator de acumulação de capital jamais foi aceito pelos “proprietários” de
escravos. Barões do café e outros representantes das oligarquias rurais que
detinham o poder econômico naquela época exigiram indenização pelo “prejuízo
financeiro” imposto a eles pelo imperador Dom Pedro II. Insatisfeitos, ajudaram
a acabar com a monarquia m 1889, pouco mais de um ano após a abolição, a
fundar, por meio de golpe militar, uma República de araque (porque dominada por
duas oligarquias de dois Estados), e a pressionar os presidentes do novo regime
a importar mão-de-obra da Europa para embranquecer nossa classe trabalhadora.
Tanto ódio por outro ser humano condenou este país ao fracasso, à construção de uma sociedade profundamente injusta, desigual, racista, violenta com os mais pobres e com a maioria negra, irreconciliável. Um leitor indignado fez certa vez paralelo com os Estados Unidos para contestar a ideia de que o racismo, e não a taxa de juros, a péssima infraestrutura e o sistema tributário caótico, é o maior entrave ao desenvolvimento do Brasil. Ocorre que, nos EUA, os negros representam 12% da população; aqui, 56%, numa contagem subestimada.
Ora, se uma minoria branca e endinheirada
não aceita conviver com a maioria negra e pobre, nós temos um problema,
Houston. Negros americanos, descendentes como os do Brasil de africanos
escravizados, lutam por direitos e igualdade desde sempre e, mesmo assim, foram
submetidos a regimes de segregação racial, em alguns Estados, até a década de
1960. A segregação oficial foi banida, políticas afirmativas para tentar
igualar oportunidades entre negros e brancos foram adotadas, iniciativas de
compensação pelo horror sofrido durante séculos de escravidão e de segregação
se tornaram realidade, mas, mesmo assim, a população negra americana continua
sendo discriminada de maneira ignominiosa, talvez, pela maioria branca, em
todos os setores da sociedade do país mais rico do mundo.
Aqui, a maioria da população, negra,
oprimida por quase 400 anos de escravidão “oficial” e por outros 133 de
discriminação dissimulada e, portanto, covarde, começou a se beneficiar de
políticas afirmativas apenas neste século e restritas ao Estado.
Cotas de 10%, 20%, reservadas ao maior
contingente populacional do país, são humilhantes e estão longe de resolver o
problema secular que nos assola e nos impede se sermos uma nação.
As consequências do nosso péssimo começo _
não se pode falar nem em “contrato social”, afinal, como bem explica Luiz
Guilherme Schymura, presidente do Ibre-FGV, não há contrato quando uma das
partes é infinitamente mais beneficiada pelos recursos do Estado do que as
outras _ estão aí, na paisagem urbana de nossos centros urbanos, na estagnação
econômica que nos assola há 40 anos, na concentração de renda que relega 50
milhões à miséria e a mais de 100 milhões à pobreza e à falta de oportunidades
para ascender e ter uma vida razoavelmente digna, na violência que tira a vida
de cerca de 60 mil brasileiros todo ano, a maioria de pele negra ou parda. A Constituição
de 1988 é, sem dúvida, o maior avanço que este país já teve na conformação de
um arcabouço legal que nos permita começar a mudar essa paisagem. Desde então,
os gastos sociais cresceram de forma significativa, mas os grandes problemas
permanecem intocados.
Um deles é o domínio do orçamento público
por interesses de grupos específicos, que curiosamente têm conseguido aumentar
suas benesses nas últimas duas décadas, talvez, por saberem que, em algum
momento, realizar-se-á em plena Brasília, localizada a mais de mil quilômetros
do mar, o último baile da Ilha Fiscal (festa de gala que simbolizou o fim da
monarquia, realizada no pequeno palácio, localizado na Baía da Guanabara).
"Não é segredo e tampouco exagero observar que muita gente enriqueceu no Brasil pela via da captura do Estado. Exemplos recentes incluem subsídios do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), desonerações tributárias, gastos tributários e outros. Essa forma de enriquecimento constitui um verdadeiro veneno social”, escreve Arminio Fraga ex-presidente do Banco Central, em seu sucinto e ao mesmo tempo iconoclasta estudo “Estado, Desigualdade e Crescimento no Brasil”.
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