Valor Econômico
Alerta de Umberto Eco sobre Itália de 2003
serve ao Brasil
“Deve
fazer uma provocação por dia, tanto melhor se inconcebível e inaceitável. Isto
lhe permite ocupar as primeiras páginas e as notícias de abertura da mídia e
ser sempre o centro das atenções. Em segundo lugar, a provocação deve ser tal
que a oposição seja obrigada a aceitá-la e a reagir com energia. Conseguir
produzir todos os dias uma reação indignada das oposições permite se mostrar ao
próprio eleitorado como vítima de uma perseguição”.
Ao fim de uma semana em que o presidente
Jair Bolsonaro disse que as eleições podem ser “conturbadas”, chamou de
“psicopatas” e “imbecis” quem classifica as manifestações em sua defesa de atos
antidemocráticos, desafiou quem um dia se arvore a prendê-lo, conclamou o “povo
bem armado, que jamais será escravizado” e, por fim, entrou com ação no Supremo
contra um de seus ministros por “abuso de autoridade”, a descrição acima parece
lhe cair como uma luva.
Data, porém, de quase 20 anos atrás, quando Umberto Eco pôs-se a descrever o modo Silvio Berlusconi de governar. Bem antes de Donald Trump, foi o ex-primeiro-ministro italiano quem antecipou o que viria a ser bolsonarismo no poder. O artigo, escrito em 2003, foi editado em livro que, no Brasil, teve publicação póstuma (“A passo de caranguejo”, Record, 2022).
O bisavô do presidente é de Anguillara, a 256 quilômetros da Milão de Berlusconi. Quando o ex-primeiro ministro estreou na política, a Itália emergia da operação “Mãos Limpas”, inspiradora da “Lava-Jato”, parteira de Bolsonaro. Filho da classe média alta italiana, Berlusconi valeu-se de fortuna, construída com um império de comunicação, para fazer política com o discurso de que não roubaria porque já era rico. Bolsonaro sempre foi político mas chegou à Presidência com o discurso de que não roubaria porque com ele também ascenderiam as Forças Armadas.
A tutela militar logo se esvaiu e
Bolsonaro, sem ser dono de um império midiático, valeu-se das redes sociais,
incipientes na era Berlusconi, como arma de seu poder. Não só ele, como também
seus adeptos, vide Daniel Silveira. Olha só o que Umberto Eco diz sobre eles:
“Para criar provocações em cadeia, não é só você que deve falar, mas é preciso
deixar o caminho livre para os mais desvairados entre seus colaboradores”.
Bolsonaro hipnotiza a audiência com vaivéns
em torno de temas como o da Petrobras, no seu terceiro presidente, todos
ameaçados pela mudança na política de preços da empresa, nunca concretizada.
Eco também já previra: “A técnica consiste em lançar a provocação, desmenti-la
no dia seguinte (“vocês me entenderam mal”) e lançar imediatamente uma outra,
de modo que para esta se dirijam as atenções tanto da nova reação da oposição
como do renovado interesse da opinião pública”.
Se Emmanuel Macron valeu-se de seu embate
com Bolsonaro, personagem proscrito da opinião pública internacional, isso
tampouco foi uma novidade. Eco lembra que tanto Jacques Chirac quando Leonel
Jospin, ex-presidentes franceses contemporâneos de Berlusconi, se valeram da
oposição ao seu modo de governar para ganhar votos: “Prestem atenção, sou uma
pessoa de bem, não vou fazer no meu país o que Berlusconi está fazendo na
Itália”.
Sobra até uma carícia na auto-estima
tupiniquim. Umberto Eco não podia prever, em 2003, que um Bolsonaro se abateria
sobre a nação brasileira. Mas, ao comentar as acusações que se faziam contra
Berlusconi, acaba por acalmar o complexo de vira-latas de quem se vê como o
único povo incapaz de distinguir o conflito de interesse da proteção do
presidente aos filhos: “Dá vontade de rir, portanto, quando teimam em
sensibilizá-lo falando do conflito de interesses. A resposta que se ouve por aí
é que não importa a ninguém que Berlusconi cuide dos próprios interesses se ele
prometer que defenderá os interesses deles”.
No berço do primeiro experimento
republicano da história, Berlusconi vivia às turras com o judiciário e acabou
sonegado por sonegação. Eco, porém, era cético sobre os limites desta
estratégia de denunciar o golpismo constitucional. A Itália é aqui: “A esses
leitores não vale dizer que Berlusconi modificaria a Constituição, primeiro
porque eles nunca a leram (...) Se um artigo da Constituição for depois
modificado, para eles é irrelevante”.
O que resta à oposição além dos mais de 140
pedidos de impeachment que fazem a fortuna de Arthur Lira? A reação é
necessária senão o mandatário vai tentar elevar a escala das provocações para
testar os limites. Pelo menos é o que diz Eco: “Se a opinião pública não reagiu
com suficiente energia, isto significa que até mesmo o mais ultrajante dos
caminhos poderia ser, com a devida calma, percorrido. Este é o motivo pelo qual
a oposição é obrigada a reagir, ainda que saiba que se trata de pura e simples
provocação, porque, caso se calasse, abriria o caminho para outras
alternativas”.
Se ficar calado é ruim, denunciar a
escalada de desvarios tampouco é suficiente. Eco, que cresceu sob o fascismo,
rejeitava a designação para Berlusconi ("as redações dos jornais estão
abertas"). O que deveria vir depois que o candidato que lidera prometeu
"jogar o fascismo no esgoto da história?"
"Suas próprias provocações”, escreveu
Eco. A lua-de-mel de Lula e Janja? Eco tem outras ideias: “A capacidade de
conceber planos de governo, sobre problemas aos quais a opinião pública é
sensível, e de lançar ideias sobre futuras disposições do país, de tal maneira
que obrigue a mídia a dar ao menos o mesmo espaço que dá para as provocações de
Berlusconi”.
O escritor pregava a união da oposição.
Tinha poucas esperanças sobre isso mesmo sem ter conhecido o PSDB. Insistia,
porém, que a oposição fizesse a opinião pública perceber um outro modo de
governar, nem que, para isso, fosse preciso usar as mesmas armas de Bolsonaro,
quer dizer, de Berlusconi. A cobertura do casamento nas redes sociais lulistas
foi por aí, mas Eco resolveu contrariar: “Se você diz às pessoas que o governo
errou ao fazer isso ou aquilo, elas podem não saber se você tem ou não razão.
Se, no entanto, você disser às pessoas que gostaria de fazer isto ou aquilo, a
ideia poderia atingir a imaginação e o interesse de muitos, suscitando a
pergunta sobre por que a maioria não o faz”.
Corria o segundo de quatro mandatos de
Berlusconi quando Eco escreveu. A longevidade de seu poder, que somou nove
anos, sugere que os italianos ignoraram os alertas do escritor, morto em 2016.
Aos 85 anos, Berlusconi passou, o presidente estrebucha e o noivo aposta no
"amor" petista contra o “ódio” bolsonarista. A ver quem faz eco.
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