terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Assis Moreira - Política industrial: todos juntos

Valor Econômico

Modelos econômicos diferentes, mas apetite parecido em meio à competição tecnológica e geopolítica

O plano de nova política industrial no Brasil, anunciado ontem, provocaria anos atrás uma imediata chuva de advertências por parte de outros parceiros. Desta vez, porém, o anúncio do presidente Lula ocorre num cenário global de renascimento das políticas industriais e de expansão significativa de programas de subsídios, em meio à intensificação da competição tecnológica e geopolítica entre as principais potências.

Na prática, quase todos os países se envolvem sistematicamente em alguma forma de política industrial, especialmente grandes economias como os EUA, Europa e a China, apesar de seus modelos econômicos diferentes.

Em março de 2019, o Conselho Europeu, que reúne os líderes do bloco comunitário, convidou a Comissão Europeia a apresentar uma nova "política industrial assertiva que permita que a UE continue sendo uma potência industrial". A avaliação em Bruxelas é de que a Europa não pode se dar ao luxo de perder a corrida por certas tecnologias avançadas consideradas cruciais no século XXI.

Estudo publicado em 2022 pela Comissão Europeia mostrou que apenas uma empresa europeia estava entre as 20 maiores de tecnologia por capitalização de mercado, que são, em sua maioria, dos EUA e da Ásia. Embora a Europa ainda esteja se saindo relativamente bem em termos de presença entre as maiores empresas de tecnologia verde, a constatação é de que à medida que a China e a Índia avançam na cadeia de suprimentos, as empresas europeias enfrentarão uma concorrência cada vez maior. O estudo mostra que os EUA dominam amplamente o mercado de carros autônomos e de tecnologia da informação, assim como a China no mercado de baterias para veículos elétricos e Taiwan no de semicondutores.

Face à China e aos EUA, a Europa acelerou assim subvenções para uma indústria visando emissões líquidas zero, além de buscar garantir fornecimento de matérias-primas estratégicas para seus 27 países membros. A pandemia de covid-19 e sobretudo a invasão da Ucrânia pela Rússia deflagraram o sinal de alarme na Europa sobre ‘dependências perigosas’, como na relação com a China para a saúde e com a Rússia para energia. O ‘Inflation Reduction Act (IRA), lançado por Joe Biden nos EUA em 2022, prevendo US$ 369 bilhões para a indústria verde americana, também fez Bruxelas direcionar centenas de bilhões de euros para setores de alta tecnologia e relacionados à transição energética.

Sem surpresa, em junho do ano passado, em reunião de ministros dos principais países comerciantes, , em Paris, Estados Unidos e União Europeia rasgaram a fantasia e sinalizaram interesse na adaptação de regras comerciais internacionais para o setor industrial - ou seja, em legalizar medidas unilaterais que turbinem sua capacidade industrial oficialmente para fazer a transição verde e digital.

Isso passaria pela criação do que no jargão da OMC é chamado de “caixa verde” (subsídios autorizados) para o setor industrial, focado na transição verde, como publicamos no ano passado. Significaria facilitar uso de conteúdo local ou programas que poderiam violar atuais regras da OMC, dependendo das barganhas - mas uma flexibilização que excluiria economias não de mercado e empresas estatais ou exigiria mais transparência, para visar a China.

Por sua vez, um grupo de 44 países africanos apresentou no ano passado sua proposta específica para “reequilibrar as regras comerciais para promover a industrialização” de nações em desenvolvimento, que é mais ampla em termos de flexibilidade. Encaixaria facilmente o que a ex-presidente Dilma Rousseff adotou, incluindo Inovar-Auto, condenado na OMC.

Esses movimentos não prosperaram para a conferencia de ministros de comércio que será realizada dentro de um mês em Abu Dhabi - mas o tema entrou na agenda da Organização Mundial do Comércio (OMC).

 — Foto:  (Foto: Sergei Supinski/AFP)— Foto: (Foto: Sergei Supinski/AFP)

Na linha de política industrial forte, na semana passada o comissário de Mercado Interno, o francês Thierry Breton, um reconhecido liberal, mencionou a preparação futura de um fundo de defesa de 100 bilhões de euros - quase o dobro do pacote anunciado por Lula para a nova política industrial brasileira – para ampliar a produção de armas e munições na Europa.

Dos R$ 300 bilhões que o governo Lula promete disponibilizar até 2026 para financiamentos destinados à nova política industrial, cerca de R$ 40 bilhões serão para a indústria exportadora. Nesse segmento, o programa inclui criação do BNDES Exim Bank, mais linhas de financiamento, redução de spread para o pré-embarque, retomada do apoio a exportação de serviços - além de requerimentos de conteúdo local.

A secretária de Comércio Exterior, Tatiana Prazeres, destaca os R$ 40 bilhões para a indústria exportadora brasileira, o plano de desburocratizar comércio, promover cultura exportadora e buscar ampliar acesso a mercados. O governo Lula promete que o Portal Único de Comércio Exterior, que vem sendo montado desde 2014, será implementado integralmente até fim de 2025. No papel, taxas e tarifas portuárias serão simplificadas. O governo diz ter mapeado 105 taxas portuárias incidentes sobre a atividade exportadora que resultam em custos excessivos.

O crédito à exportação de serviços vai voltar. Os financiamentos e garantias dependem muito como vão ser aplicados. Margem de preferência o Brasil pode aplicar. Não incluiu isso em acordo plurilateral.

Para Victor do Prado, ex-diretor de divisão na OMC e professor de comércio internacional, o plano brasileiro é interessante, sobretudo a coordenação entre diferentes órgãos e a variedade de medidas. Mas o documento é vago e a única coisa que, à primeira vista, poderia violar regras da OMC é a exigência de conteúdo local. É preciso no entanto ver o texto da lei ou decreto, não dá para afirmar só com o papel geral anunciado ontem sobre a compatibilidade com as regras.

De todo modo, lembra Victor do Prado, muitos países vem adotando políticas industriais - a começar pelos EUA - com medidas que são totalmente contrarias à OMC. 'Mas ninguém vai reclamar. Cada um vai adotar a sua. Os europeus já fizeram. Quem paga é o contribuinte… ', diz ele.

Para outro conhecido especialista em regras do comércio internacional, que prefere não ter o nome citado, no pacote anunciado pelo governo Lula ‘algumas medidas serão legais, outras, como conteúdo local, não, podendo gerar consultas, panel e até apelação se a parte reclamante por participante do Mecanismo Interino de Apelação/Arbitragem (MPIA, na sigla em inglês), que reúne alguns países na ausência do Órgão de Apelação da OMC.

A constatação é, porém, que há maior tolerância com políticas industriais, agora na moda nos países desenvolvidos. ´´Elas são, a meu juízo, custosas, discriminatórias e antidemocráticas’, avalia esse especialista.


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