Valor Econômico
Modelos econômicos diferentes, mas apetite
parecido em meio à competição tecnológica e geopolítica
O plano de nova política industrial no
Brasil, anunciado ontem, provocaria anos atrás uma imediata chuva de
advertências por parte de outros parceiros. Desta vez, porém, o anúncio do
presidente Lula ocorre num cenário global de renascimento das políticas
industriais e de expansão significativa de programas de subsídios, em meio à
intensificação da competição tecnológica e geopolítica entre as principais
potências.
Na prática, quase todos os países se envolvem
sistematicamente em alguma forma de política industrial, especialmente grandes
economias como os EUA, Europa e a China, apesar de seus modelos econômicos
diferentes.
Em março de 2019, o Conselho Europeu, que reúne os líderes do bloco comunitário, convidou a Comissão Europeia a apresentar uma nova "política industrial assertiva que permita que a UE continue sendo uma potência industrial". A avaliação em Bruxelas é de que a Europa não pode se dar ao luxo de perder a corrida por certas tecnologias avançadas consideradas cruciais no século XXI.
Estudo publicado em 2022 pela Comissão
Europeia mostrou que apenas uma empresa europeia estava entre as 20 maiores de
tecnologia por capitalização de mercado, que são, em sua maioria, dos EUA e da
Ásia. Embora a Europa ainda esteja se saindo relativamente bem em termos de
presença entre as maiores empresas de tecnologia verde, a constatação é de que
à medida que a China e a Índia avançam na cadeia de suprimentos, as empresas
europeias enfrentarão uma concorrência cada vez maior. O estudo mostra que os EUA
dominam amplamente o mercado de carros autônomos e de tecnologia da informação,
assim como a China no mercado de baterias para veículos elétricos e Taiwan no
de semicondutores.
Face à China e aos EUA, a Europa acelerou
assim subvenções para uma indústria visando emissões líquidas zero, além de
buscar garantir fornecimento de matérias-primas estratégicas para seus 27
países membros. A pandemia de covid-19 e sobretudo a invasão da Ucrânia pela
Rússia deflagraram o sinal de alarme na Europa sobre ‘dependências perigosas’,
como na relação com a China para a saúde e com a Rússia para energia. O
‘Inflation Reduction Act (IRA), lançado por Joe Biden nos EUA em 2022, prevendo
US$ 369 bilhões para a indústria verde americana, também fez Bruxelas
direcionar centenas de bilhões de euros para setores de alta tecnologia e
relacionados à transição energética.
Sem surpresa, em junho do ano passado, em
reunião de ministros dos principais países comerciantes, , em Paris, Estados
Unidos e União Europeia rasgaram a fantasia e sinalizaram interesse na
adaptação de regras comerciais internacionais para o setor industrial - ou
seja, em legalizar medidas unilaterais que turbinem sua capacidade industrial
oficialmente para fazer a transição verde e digital.
Isso passaria pela criação do que no jargão
da OMC é chamado de “caixa verde” (subsídios autorizados) para o setor
industrial, focado na transição verde, como publicamos no ano passado.
Significaria facilitar uso de conteúdo local ou programas que poderiam violar
atuais regras da OMC, dependendo das barganhas - mas uma flexibilização que
excluiria economias não de mercado e empresas estatais ou exigiria mais
transparência, para visar a China.
Por sua vez, um grupo de 44 países africanos
apresentou no ano passado sua proposta específica para “reequilibrar as regras
comerciais para promover a industrialização” de nações em desenvolvimento, que
é mais ampla em termos de flexibilidade. Encaixaria facilmente o que a
ex-presidente Dilma Rousseff adotou, incluindo Inovar-Auto, condenado na OMC.
Esses movimentos não prosperaram para a
conferencia de ministros de comércio que será realizada dentro de um mês em Abu
Dhabi - mas o tema entrou na agenda da Organização Mundial do Comércio (OMC).
— Foto: (Foto:
Sergei Supinski/AFP)
Na linha de política industrial forte, na
semana passada o comissário de Mercado Interno, o francês Thierry Breton, um
reconhecido liberal, mencionou a preparação futura de um fundo de defesa de 100
bilhões de euros - quase o dobro do pacote anunciado por Lula para a nova
política industrial brasileira – para ampliar a produção de armas e munições na
Europa.
Dos R$ 300 bilhões que o governo Lula promete
disponibilizar até 2026 para financiamentos destinados à nova política
industrial, cerca de R$ 40 bilhões serão para a indústria exportadora. Nesse
segmento, o programa inclui criação do BNDES Exim Bank, mais linhas de
financiamento, redução de spread para o pré-embarque, retomada do apoio a
exportação de serviços - além de requerimentos de conteúdo local.
A secretária de Comércio Exterior, Tatiana
Prazeres, destaca os R$ 40 bilhões para a indústria exportadora brasileira, o
plano de desburocratizar comércio, promover cultura exportadora e buscar
ampliar acesso a mercados. O governo Lula promete que o Portal Único de
Comércio Exterior, que vem sendo montado desde 2014, será implementado
integralmente até fim de 2025. No papel, taxas e tarifas portuárias serão
simplificadas. O governo diz ter mapeado 105 taxas portuárias incidentes sobre
a atividade exportadora que resultam em custos excessivos.
O crédito à exportação de serviços vai
voltar. Os financiamentos e garantias dependem muito como vão ser aplicados.
Margem de preferência o Brasil pode aplicar. Não incluiu isso em acordo
plurilateral.
Para Victor do Prado, ex-diretor de divisão
na OMC e professor de comércio internacional, o plano brasileiro é
interessante, sobretudo a coordenação entre diferentes órgãos e a variedade de
medidas. Mas o documento é vago e a única coisa que, à primeira vista, poderia
violar regras da OMC é a exigência de conteúdo local. É preciso no entanto ver
o texto da lei ou decreto, não dá para afirmar só com o papel geral anunciado
ontem sobre a compatibilidade com as regras.
De todo modo, lembra Victor do Prado, muitos
países vem adotando políticas industriais - a começar pelos EUA - com medidas
que são totalmente contrarias à OMC. 'Mas ninguém vai reclamar. Cada um vai
adotar a sua. Os europeus já fizeram. Quem paga é o contribuinte… ', diz ele.
Para outro conhecido especialista em regras
do comércio internacional, que prefere não ter o nome citado, no pacote
anunciado pelo governo Lula ‘algumas medidas serão legais, outras, como
conteúdo local, não, podendo gerar consultas, panel e até apelação se a parte
reclamante por participante do Mecanismo Interino de Apelação/Arbitragem (MPIA,
na sigla em inglês), que reúne alguns países na ausência do Órgão de Apelação
da OMC.
A constatação é, porém, que há maior
tolerância com políticas industriais, agora na moda nos países desenvolvidos.
´´Elas são, a meu juízo, custosas, discriminatórias e antidemocráticas’, avalia
esse especialista.
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