terça-feira, 23 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Risco da nova política industrial é repetir erros da velha

O Globo

Histórico recomenda ceticismo sobre os planos do governo de investir R$ 300 bilhões até 2026

O governo abriu ontem mais um capítulo na longa história das políticas industriais brasileiras. Desta vez, o plano se chama Nova Indústria Brasil e prevê financiamentos da ordem de R$ 300 bilhões até 2026, a maior parte do BNDES. É verdade que o mundo tem sido palco de uma nova onda de ações governamentais para reavivar a indústria. Mas o pretexto da “onda global” não necessariamente justifica as medidas. O governo amontoou diversos objetivos num só plano: quer reduzir a pegada de carbono, obter autonomia em tecnologias de defesa, aumentar a participação da agroindústria, transformar digitalmente as empresas etc. Não disse, porém, como cada um desses objetivos se traduzirá em benefícios e incentivos.

Fortalecer a indústria é sonho antigo dos governantes. No mundo emergente, a industrialização sempre foi vista como elevador para o desenvolvimento. No Brasil, a desindustrialização aconteceu antes de o país ficar rico. No começo dos anos 1990, o setor industrial ocupava 23% da mão de obra. Hoje ocupa 19%. A redução se deve a uma combinação de fatores internos e à conjuntura global. O Brasil não foi o único país a sofrer desindustrialização, nem o mais afetado. Na Coreia do Sul, a mão de obra industrial caiu de 36% do total em 1991 para 25%. Nos Estados Unidos também, de 23% para 19%.

Entre as várias metas apresentadas, o plano do governo mira em alguns alvos certos. Abandonou a ideia de simplesmente “reindustrializar” o país para, ao menos na teoria, destinar incentivos a pesquisa, desenvolvimento e inovação. Fez bem em escolher como destino dos recursos a agroindústria, setor em que o Brasil tem evidente vantagem comparativa. Há ainda a promessa de diminuir a burocracia e melhorar o ambiente de negócios, medida que tem a vantagem de beneficiar todos os setores.

Mas o histórico dos governos como investidor — não apenas, mas especialmente, os petistas — recomenda ceticismo. Quando postas em prática, políticas industriais têm se tornado meios recorrentes de favorecer setores politicamente interessantes (indústria automotiva ou petrolífera) e obsessões desenvolvimentistas (indústria naval ou a produção de semicondutores nacionais). O adjetivo “estratégico” costuma servir de biombo para esconder a ineficiência e a improdutividade, cujo preço é pago por todos os demais setores não favorecidos — e pelo consumidor.

Outro senão tem sido a resistência crônica em criar sistemas de avaliação e correção de rumo. O provisório vira definitivo, como ilustram o caso da Zona Franca de Manaus e a profusão de regimes tributários especiais. Por pressão política ou decisões nos tribunais, mesmo quem não atinge metas continua recebendo ajuda “por direito adquirido”. A captura do Estado é prática corriqueira. As exceções da reforma tributária estão aí para demonstrar.

O governo deveria ter mostrado disposição de corrigir erros históricos. Para proteger a indústria, as alíquotas de produtos importados foram colocadas nas alturas quando o sonho da substituição de importações parecia factível. Décadas depois, o regime persiste sem muita alteração, a despeito de boa parte das empresas não ter alcançado níveis mínimos de competitividade. Como resultado, o mercado é servido por produtos nacionais piores ou importados mais caros. O risco de falar em nova política industrial a esta altura é ela não passar de uma versão recauchutada, com os mesmos problemas da velha.

Rever política exitosa de preservação urbana no Rio seria um equívoco

O Globo

Novo Plano Diretor abre brecha preocupante a reavaliação de Apacs, sob o risco de descaracterizar a cidade

As Áreas de Proteção do Ambiente Cultural (Apacs), instituídas na cidade do Rio de Janeiro a partir dos anos 1980, são um avanço para preservar imóveis, ruas, praças e características peculiares dos bairros, em meio a um cenário em constante transformação. Críticos veem a legislação das Apacs como engessamento, mas sem ela a memória da cidade corre risco.

Compreende-se que normas que orientam o crescimento da cidade sempre suscitarão debates, saudáveis para discutir os rumos do desenvolvimento urbano preservando o patrimônio e garantindo a qualidade de vida de moradores e visitantes. Mas não se pode simplesmente pôr abaixo uma conquista de décadas, que até hoje sobreviveu a diferentes governos, ideologias e políticas.

Por tudo isso, é preocupante que o novo Plano Diretor, sancionado na semana passada pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), abra brecha para enfraquecer o projeto das Apacs. A legislação aprovada pela Câmara, que orientará a evolução da cidade pelos próximos dez anos, afirma que “dentro do período de vigência deste Plano Diretor, as Apacs deverão passar por avaliação”. Depois da sanção, Paes afirmou que Apacs não serão revistas em seu governo. Melhor assim. Mas, como o trecho não foi vetado, a possibilidade está aberta.

As Apacs são mais abrangentes que os tombamentos tradicionais, pois fixam normas para bairros inteiros. Tiveram origem no Projeto Corredor Cultural, de 1979, foram aperfeiçoadas e ampliadas nas décadas seguintes. Um de seus méritos é conjugar preservação e desenvolvimento urbano. As áreas não se tornam intocáveis, apenas ganham regras para disciplinar o crescimento e preservar as paisagens que projetaram o Rio internacionalmente.

Hoje a cidade conta com 34 Apacs (ou assemelhadas). Entre elas, os bairros de Santa Teresa e Urca, trechos de Laranjeiras, Cosme Velho, Leblon, Marechal Hermes e Santa Cruz, a Ilha de Paquetá, os Arcos da Lapa, a Fábrica de Tecidos Confiança (Vila Isabel) e áreas no entorno de bens tombados.

A política do “liberou geral” já rendeu ao Rio perdas irreparáveis. Uma delas é visível na atual Avenida Rio Branco, antiga Avenida Central. Inaugurada pelo prefeito Pereira Passos em 1905, inspirada nas reformas urbanísticas de Paris, foi quase toda descaracterizada. Todos os prédios do antigo bulevar haviam sido escolhidos num concurso que reuniu os arquitetos mais brilhantes da época. Restaram pouquíssimos, como a Biblioteca Nacional, o Theatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes, o Clube Naval, o edifício Docas de Santos.

É possível que, ao longo das últimas décadas, legisladores tenham cometido um ou outro exagero nas Apacs, que podem ser rediscutidos. Mas seria um erro rever uma política que deu certo e deveria inspirar cidades Brasil afora. É o tipo de equívoco para o qual não haverá conserto.

Estatais federais voltam ao vermelho no governo Lula

Valor Econômico

Neste ano, a LDO prevê abatimento contábil adicional de R$ 5 bilhões na meta fiscal das estatais que só poderão ser aplicados em investimentos no Novo PAC

Pela primeira vez em cinco anos, as estatais federais deverão fechar 2023 com déficit, ou seja, com despesas superiores às receitas. Esse histórico exclui o resultado do primeiro ano da pandemia, em 2020. Se o déficit for superior ao que está previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), o Tesouro terá que cobrir a diferença, o que não acontece há oito anos.

As estatais federais são um grupo de 22 empresas chamadas de não dependentes que, teoricamente, não precisam do governo, geram suas próprias receitas, mas cujo desempenho é considerado na apuração do resultado fiscal do governo federal. Por isso a LDO autoriza o Tesouro a cobrir o resultado delas quando é deficitário.

O grupo é heterogêneo e reflete as ambições de diferentes governos de atuar nos mais diversos setores, incluindo desde a Dataprev, a Ceagesp de São Paulo e o Ceasa de Minas até a Casa da Moeda, a Infraero, os Correios, a Eletronuclear e a fabricante de navios Emgepron. As estatais financeiras e a Petrobras estão fora do grupo.

Em boa parte de 2023, o Tesouro viveu sob o suspense de ter que cobrir um rombo nas estatais. As projeções variaram bastante ao longo do ano, mas foram diminuindo. A primeira vez que o governo previu a necessidade de compensação foi no relatório de julho, relativo ao terceiro bimestre. O número caiu a R$ 4,5 bilhões em novembro.

A mais recente previsão do Ministério da Gestão (MGI) é de déficit menor. A partir de dados de outubro, o MGI informou que o resultado das estatais federais será deficitário em R$ 3,057 bilhões em 2023, próximo da meta fiscal definida na LDO de R$ 3,002 bilhões para o ano (Valor, 8/1). Confirmada a estimativa, ainda assim será necessária a despesa do Tesouro para compensar a diferença.

Série publicada pelo Valor neste mês mostra o caso de alguma das estatais mais problemáticas. Uma delas é a Eletronuclear, responsável pela gestão e pela operação das usinas nucleares de Angra dos Reis (RJ), que foi incorporada às contas fiscais do governo após a privatização da Eletrobras. A Eletronuclear está às voltas com o projeto bilionário de Angra 3, que já recebeu R$ 8,5 bilhões em investimentos. O Ministério de Minas e Energia estima que serão necessários mais R$ 21 bilhões para concluir a obra.

Há também o caso da Emgepron, vinculada ao Ministério da Defesa, por intermédio da Marinha do Brasil, que tem o maior déficit projetado entre as estatais federais e está envolvida na tarefa ambiciosa de construção de quatro fragatas da classe Tamandaré e do navio polar Almirante Saldanha. A Emgepron argumenta que a previsão de déficit não indica que “esteja operando com prejuízo ou que haverá a necessidade de alguma compensação por parte do Tesouro”, uma vez que os recursos necessários para arcar com o referido investimento já integram o ativo da estatal.

Outro caso é o dos Correios, que o governo Bolsonaro pretendeu privatizar, mas foi retirado do Programa Nacional de Desestatização (PND) pelo presidente Lula. Apesar de ter monopólio, os Correios têm prejuízo e não souberam enfrentar as empresas privadas nas áreas de logística e entrega de mercadorias, que ganharam espaço com a pandemia e a revolução dos marketplaces.

Com exceção de 2020, quando tiveram déficit de R$ 600 milhões por causa da pandemia da covid-19, as estatais federais registraram superávits nos últimos cinco anos. Em 2021, o resultado foi positivo em R$ 3 bilhões; e, no ano passado, em quase R$ 5 bilhões. De acordo com números do Banco Central, de 2012 a 2017, elas fecharam no vermelho. Nos anos seguintes, o superávit foi garantido com aportes do governo. Segundo o Tesouro, em 2018, a gestão do presidente Michel Temer injetou R$ 5 bilhões no caixa das estatais; e, no governo Jair Bolsonaro, foram mais R$ 10 bilhões. Ou seja, não houve cobertura posterior de déficit, mas o dinheiro público foi antecipado de outra forma.

O Tesouro não prevê a necessidade de novas compensações de déficits para os próximos anos do governo Lula. Não porque terão superávit. A LDO prevê que as estatais poderão ter um déficit primário de até R$ 7,31 bilhões em 2024; de até R$ 5,66 bilhões em 2025; e de até R$ 6,66 bilhões em 2026. Neste ano, a LDO prevê ainda abatimento contábil adicional de R$ 5 bilhões na meta fiscal das estatais que só poderão ser aplicados em investimentos no Novo PAC. Ou seja, o déficit das estatais poderá ser ainda maior e chegar a R$ 12,3 bilhões, sem compensação ou esforço adicional pelo Tesouro nem pressão no resultado primário do governo.

Para o MGI, os déficits nos próximos anos são resultado de investimentos feitos com recursos em caixa, que não significam transferência de recursos fiscais. A avaliação é compatível com a visão do Planalto de que as estatais alavancam o crescimento da economia. Não se pode ignorar, porém, os efeitos fiscais dessa política, ainda mais porque, muitas vezes, os projetos de investimentos têm baixa qualidade e alavancam despesas de pessoal. O risco de se transformar em uma bola de neve não é desprezível.

Ponto de inflexão

Folha de S. Paulo

Embate de 45 anos entre Irã e EUA se intensifica com ataques de Teerã a vizinhos

Desde que partidários da Revolução Islâmica atacaram a Embaixada dos Estados Unidos em Teerã em 1979 e fizeram 52 reféns por 444 dias, o confronto define a relação entre Washington e o Irã.

Ao longo dos anos, tensões proliferaram, mas foram poucas as vezes em que a crise quase desandou para a guerra —o episódio mais recente foi o assassinato em 2020 do principal general iraniano pelos EUA em Bagdá, seguido por ataques a bases americanas no Iraque.

O padrão, contudo, sempre foi o de luta por procuração, em particular por parte de Teerã e sua ampla rede de aliados regionais.

Mas a recente crise no Oriente Médio, com o brutal ataque terrorista do Hamas palestino contra Israel e a devastação em curso de Gaza pela retaliação de Tel Aviv, reacendeu conflitos potenciais.

O Hamas não conseguiu uma grande guerra regional imediata, e sim um jogo de espera e atrito. O Irã pesou o risco da reação dos EUA, que enviaram poderosos reforços à região, e de Israel, com suas estimadas 90 bombas atômicas.

Nas últimas semanas, a dinâmica mudou. Os houthis, rebeldes iemenitas armados pelo Irã, incrementaram seus ataques no mar Vermelho, obrigando reação americana para tentar manter a rota comercial aberta. E o Irã passou a sinalizar aos Estados Unidos que não está tão passivo quanto parecia.

Na semana passada, bombardeou bases de grupos rivais a quem acusa de terrorismo na Síria, Iraque e Paquistão. Enquanto os dois primeiros países são vassalos dos iranianos, o último é a única potência nuclear muçulmana, e seu Exército revidou o ataque, como se quisesse empatar o jogo.

Tudo isso sugere a chegada a um ponto de inflexão no Irã. Seu governo enfrenta protestos devido à crise econômica decorrente da pandemia e das sanções americanas.

Joe Biden ensaiou levantá-las, porém manteve a posição de Donald Trump, que abandonara em 2018 o acordo de 2015 que trocava o fim das punições pela renúncia do Irã a produzir armas nucleares.

O comedimento do Irã até aqui sugeria temor de que a guerra derrubasse o regime, mas um conflito algo limitado com os americanos pode energizar a teocracia.

Se Teerã estiver convencida de que Biden não se envolveria em mais do que bombardeios pontuais para evitar uma guerra impopular, sua linha-dura poderá se animar a incendiar de vez a região.

Tal desenrolar é incerto, mas seria capaz de gerar um cenário nefasto para a paz e a economia global, dada sua dependência do petróleo explorado no Oriente Médio.

Curva perigosa

Folha de S. Paulo

Alta de mortes no trânsito de SP exige mais fiscalização e campanhas educativas

"Cuidado ao ‘travessar’ essas ruas", imortalizou Adoniran Barbosa, ainda em 1956, na clássica "Iracema". Quase 70 anos depois, o alerta de perigo no trânsito paulistano segue vivíssimo —não só para os pedestres, mas também para condutores e, sobretudo, motociclistas.

Segundo dados do Infosiga, o sistema de monitoramento de acidentes do governo estadual, o total de mortes nas ruas de São Paulo no ano passado foi o maior desde os 1.129 de 2015. Desta vez, houve 987 óbitos —quase três por dia, ou 7,6% a mais do que em 2022 (917).

Os motociclistas respondem por 43% do morticínio (424 casos), seguidos por pedestres (358), ocupantes de automóveis (121) e ciclistas (35). Homens de 18 a 29 anos formam a maioria dessas vítimas.
Lidar com a questão exige abordagens multifatoriais, inclusive sob a realidade dos novos tempos. A explosão da frota de motos, impulsionada pelo delivery, é uma das justificativas, mas não a única.

De fato, impelidos pela remuneração por produtividade, jovens entregadores sobre duas rodas não raro avançam o sinal vermelho, ignoram os limites de velocidade e fazem conversões proibidas.

A distração motivada pelo uso do celular durante os deslocamentos —risco compartilhado também por pedestres e motoristas— complementa o potencial danoso.

Ações da gestão Ricardo Nunes (MDB), como faixas azuis (exclusivas para motos), áreas calmas (onde a velocidade é de até 30 km/h) e mais tempo de travessia para pedestres nos cruzamentos, são positivas, mas insuficientes.

Por conveniência ou não, lamenta-se que, diante de números trágicos já em 2022, a prefeitura tenha abolido em abril a meta de reduzir as mortes para "4,5 por 100 mil habitantes" e a substituído, de forma genérica, por "realizar 18 ações" de contenção. Registre-se: em 2023 foram mais de 8 por 100 mil.

Cabe ao poder público esmiuçar os dados de cada uma dessas mortes, identificar correspondências e traçar medidas específicas nas vias mais perigosas, contemplando os grupos mais vulneráveis.

É urgente investir em sinalização viária abundante, semáforos menos falhos e calçadas e faixas de pedestres adequadas; requalificar a combalida Companhia de Engenharia de Tráfego (CET); ampliar a fiscalização, principalmente de motocicletas, com mais agentes nas ruas e radares específicos.

Nada é mais premente, contudo, do que fomentar campanhas educativas intensivas e permanentes, em todos os níveis, desde o ensino infantil. O destino de Iracema pode estar na próxima esquina.

O fantasma do déficit da Previdência

O Estado de S. Paulo

Prioridades do governo passam longe de medidas de equacionamento que permitam o financiamento da Previdência e a sobrevivência do sistema e a proteção de seus beneficiários no longo prazo

O País gastou R$ 394,7 bilhões para cobrir o déficit com o pagamento de aposentadorias e pensões em 12 meses até novembro do ano passado, conforme publicou o jornal Valor. A cifra representou um aumento de 8% em relação ao período anterior, e só não foi ainda pior em razão das regras mais rígidas para a concessão de novos benefícios, estabelecidas pela reforma da Previdência aprovada em 2019.

Desse total, as aposentadorias pagas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) consumiram R$ 290,3 bilhões, enquanto as de servidores públicos e de militares demandaram R$ 104,3 bilhões. A diferença é que o INSS contempla 28 milhões de trabalhadores e pensionistas da iniciativa privada, enquanto o regime próprio beneficia pouco mais de 1 milhão de pessoas.

O rombo reflete desigualdades que caracterizam o País há décadas. Proporcionalmente, o déficit gerado pelos servidores públicos e militares sempre foi maior do que o do regime geral, o que se manteve mesmo após a reforma. Graças à proximidade com o então presidente Jair Bolsonaro, as Forças Armadas ainda aproveitaram a tramitação da proposta para assegurar condições especiais por meio de uma reestruturação de carreiras.

Mesmo com falhas, a elevação da idade mínima e a criação de regras mais duras para a aposentadoria nos setores público e privado geraram uma economia potencial de R$ 800 bilhões para a União em até dez anos. Não foi a reforma definitiva, por óbvio, mas foi o suficiente para adiar o debate sobre uma nova reforma para a segunda metade da próxima década.

Os números mais recentes da Previdência Social, contudo, mostram que essa perspectiva mudou – e rapidamente. A redução nas filas de espera por benefícios ampliou sobremaneira os gastos, e ainda não se sabe se esse resultado é circunstancial ou estrutural. Mas, além da questão pontual das filas, há outros aspectos que deveriam colocar o tema no topo das preocupações de qualquer governo responsável.

O envelhecimento da população é uma realidade, e o trabalho informal continua a ser um desafio para a sustentabilidade da Previdência Social. O regime dos microempreendedores individuais (MEI) está longe de arrecadar o suficiente para bancar os benefícios futuros, enquanto a concessão de aposentadoria rural nem sequer exige contribuição previdenciária mínima.

Somente o valor desembolsado para cobrir o rombo acumulado nos 12 meses encerrados em novembro correspondeu a 3,95% do Produto Interno Bruto (PIB). O governo Lula da Silva, no entanto, não demonstra a menor disposição em enfrentar esse debate.

O ministro da Previdência, Carlos Lupi, nem sequer acredita que haja um déficit. Para ele, o número deve ser tratado como um investimento ou ainda como o maior programa social do governo. Sua prioridade, no momento, é rever as regras para pensão com morte, que limitaram os benefícios a viúvas e viúvos sem dependentes.

Já o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, quer impedir o uso de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para cobrir parcialmente o rombo da Previdência, redirecionando-os para políticas públicas que financiam, inclusive, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), medida que ampliaria ainda mais o déficit se entrasse em vigor.

Se as regalias de várias categorias do serviço público causam revolta, a maior ameaça à sustentabilidade da Previdência Social é a indexação dos benefícios ao salário mínimo. Com a política de aumentos reais transformada em lei, o déficit da Previdência será crescente, ignorando os limites impostos pelo arcabouço fiscal e comprimindo o reduzido espaço das despesas discricionárias, inclusive dos investimentos públicos.

As prioridades do governo, no entanto, não são medidas de equacionamento que permitam o financiamento e a sobrevivência do sistema e a proteção de seus beneficiários no médio e longo prazos – o verdadeiro sentido de qualquer regime de Previdência Social. Assim, contratará um problema silencioso que tomará proporções gigantescas no futuro e que exigirá uma reforma bem mais dura do que poderia ser.

A muleta da conta de luz

O Estado de S. Paulo

O ministro de Minas e Energia cogita usar a conta de luz para reduzir o impacto da transição energética, mas o governo deveria reduzir, e não ampliar os subsídios nas tarifas de energia

O emaranhado de subsídios e encargos pendurados na tarifa de energia elétrica produziu tamanha distorção que o consumidor brasileiro é incapaz de identificar, na conta de luz cobrada mensalmente, o quanto representa de fato seu consumo de eletricidade. A mixórdia começou no governo Dilma Rousseff, que decidiu baixar na marra as tarifas. Para remendar os estragos, que, como era previsível, não tardaram a aparecer, deu início em 2015 à prática de repassar às contas de luz o custo de toda a sorte de subsídios concedidos ao setor elétrico.

Ao longo dos anos, o volume dos penduricalhos levou o consumo de energia a representar apenas pouco mais da metade da tarifa de cada usuário. O resto pode ser colocado na conta do populismo econômico – como o que fez Dilma reduzir a tarifa de luz por medida provisória ou o que guiou parlamentares no atendimento a lobbies do setor elétrico. Uma vez ou outra, surgem propostas de revisão do nefasto modelo, como a que foi levantada recentemente pelo secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Barbosa Pinto.

“Temos energia barata e conta de luz cara”, reconheceu o secretário, em entrevista a O Globo, ao comentar o encarecimento provocado por um sem-número de subsídios que chega a R$ 37 bilhões neste ano, o dobro de cinco anos atrás. O secretário não detalhou as linhas gerais da revisão que, segundo ele, será discutida com o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira.

Em Davos, na Suíça, onde participou do Fórum Econômico Mundial, o ministro afirmou há poucos dias que o governo estuda reduzir o impacto da transição energética na conta de luz, obviamente recorrendo, de novo, a um modelo de subsídios – ainda que evite chamar a coisa pelo nome. “Não quero chamar de subsídio, eu quero chamar de como nós vamos financiar o impacto que a transição energética terá na conta, de forma tal que nos abra espaço para continuar avançando na transição sem perder vigor na economia”, disse o ministro.

A intenção das autoridades públicas de excluir da tarifa de energia os custos de políticas que caberiam ao governo custear costuma desaparecer sem que uma medida efetiva seja tomada nessa direção. Ao contrário, o que tem sido constatado é que as contas de luz estão cada vez mais infladas por “extras” que atendem a programas sociais, determinados tipos de energia e incentivo a setores específicos.

A criação da tarifa social para facilitar o acesso da população menos favorecida à energia elétrica, por exemplo, é legítima e meritória. Mas deveria ser incluída no Orçamento federal, como despesa discricionária, sujeita ao devido acompanhamento fiscal, não camuflada na conta de luz de contribuintes que já pagam impostos para, entre outras coisas, financiar a criação desse tipo de política social.

Incentivar fontes alternativas de energia, como a solar, é um passo importante para a descarbonização. Mas subsidiar a instalação de placas fotovoltaicas e a produção solar por empresas e famílias de classe média chega a ser acintoso, pois todos os usuários pagam o que beneficia apenas alguns. A medida, lançada como incentivo inicial à geração solar, vem se estendendo de forma perene, para a alegria dos produtores e importadores dos painéis solares.

Governo e Congresso têm o dever de corrigir o quanto antes os disparates nas contas de luz. As deficiências da política tarifária de energia vêm se agravando e criam uma situação insustentável. Não são apenas os subsídios que oneram a conta de luz. Os consumidores do mercado regulado também arcam sozinhos com a energia mais cara produzida pelas usinas de Angra 1 e 2, Itaipu e as várias térmicas contratadas em regime de disponibilidade pelas distribuidoras – custos que ficam para quem não pode migrar para o mercado livre.

De imediato, já seria um avanço adotar a transparência como critério fundamental na definição das fontes de recursos dos subsídios, sua destinação e a lógica econômica que justificou sua adoção. Políticas públicas precisam ser planejadas de forma criteriosa e transparente, não em arroubos populistas que, em geral, terminam em desastre, como ocorreu na inesquecível gestão de Dilma Rousseff.

O nome disso é antissemitismo

O Estado de S. Paulo

Ao defender boicote a judeus, Genoino mostra que o tal humanismo petista é só para alguns

Era um sábado quando, em 1.º de abril de 1933, deu-se a primeira ação coordenada do regime nazista contra os judeus: naquele dia, os alemães “puros” estavam convocados a um boicote nacional instituído pelo ditador Adolf Hitler, não devendo comprar em lojas ou outros estabelecimentos que o governo nazista identificasse como de propriedade de judeus. Criaram-se listas de lojas que os nazistas consideravam ser de propriedade judaica, enquanto soldados uniformizados e membros da Juventude Hitlerista se postavam do lado de fora dos estabelecimentos e ameaçavam possíveis clientes. Dispensável prosseguir com as consequências trágicas e desumanas do que se iniciava a partir dali.

Agora, em pleno 2024, foi também num sábado que o ex-deputado federal José Genoino, uma das mais célebres lideranças do PT e aliado inconteste do presidente Lula da Silva, defendeu um novo boicote dirigido aos judeus. Ao participar de uma transmissão ao vivo num canal companheiro, Genoino disse achar “interessante” a ideia de um boicote a “determinadas empresas de judeus” e a “empresas vinculadas ao Estado de Israel”. Ele comentava a ideia de deixar de fazer compras no Magazine Luiza por causa do apoio da empresária Luiza Trajano a um abaixo-assinado que pede a Lula que desista de apoiar a ação da África do Sul contra Israel por genocídio.

Ressalvadas as gigantescas diferenças que separam os dois momentos – e reconhecendo que Genoino, até este momento, jamais havia mostrado inclinação nazista –, a declaração é, sob todos os sentidos, uma manifestação antissemita, por discriminar expressamente os judeus. Desconsiderando a probabilidade de ter sido uma fala impensada, uma vez que o ex-parlamentar não se retratou desde então, pode-se considerar que a defesa que fez a um boicote tem fins abertamente políticos. Para Genoino, a mensagem é clara: que os empresários judeus sejam punidos, simplesmente por serem judeus, pelos atos do governo israelense em Gaza.

Desde que eclodiu, a guerra entre o Hamas e Israel vem incendiando ânimos e escancarando exibições frequentes de ódio aos judeus – das universidades nos EUA à rinha das redes sociais em todo o mundo. Tal ambiente tem ajudado a produzir disparates como esse.

É essa a consequência imediata de uma fala moralmente aberrante, politicamente descabida e juridicamente questionável como a de Genoino: a disseminação da ideia de que uma parte da sociedade, em razão de sua religião ou de sua etnia, deve responder pelos atos de um governo.

Genoino é um dos maiores representantes do PT, partido que se orgulha de sua defesa de minorias. O tal humanismo petista, no entanto, aparentemente não se aplica aos judeus. Essa minoria pode ser castigada e sofrer preconceito porque, conforme a cartilha antissemita compartilhada pela esquerda, os judeus dominam as finanças e o mundo. Portanto, para essa gente, judeus nunca serão vítimas; serão sempre algozes.

A fala de Genoino, portanto, não surpreende. O que talvez surpreenda seja a facilidade com que ele a pronunciou. O antissemitismo, ao que tudo indica, se tornou tão natural para a esquerda que salta boca afora sem que se perceba.

 

 

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