quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Maria Cristina Fernandes - O Haiti é aqui e nos Estados Unidos

Valor Econômico

Exposição negativa do agronegócio brasileiro no exterior constrange discurso oficial

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu o primeiro-ministro do Haiti, Garry Conille, na missão do Brasil junto às Nações Unidas às 4h da tarde desta segunda. Foi o sexto de sete compromissos da agenda presidencial naquela véspera de abertura da Assembleia Geral da ONU.

Trocaram amabilidades e compromissos. “Temos que assumir responsabilidade - não o Brasil, o mundo - com o Haiti. Não é possível. O país está se deteriorando e a solidariedade internacional é zero”, disse Lula. “Ele foi generoso com seu tempo, inspirador em termos de ideias e estamos ansiosos para continuar a cooperação com o Brasil no futuro”, disse Gary, que parecia satisfeito com a mobilização internacional de que Lula se fez portador.

Às 22h daquela noite no Brasil, os clientes da Dow Jones, agência noticiosa que distribui as notícias do “Wall Street Journal”, principal jornal de economia e negócios dos Estados Unidos, receberam em seus terminais a reportagem: “A vida de imigrantes haitianos: empregos que ninguém quer e dormida no chão”.

O foco da reportagem eram as condições de trabalho oferecidas a imigrantes haitianos pela JBS em sua planta industrial de Greeley, no Colorado, onde também fica a sede do braço americano da empresa.

Relatos de dezenas de funcionários, ex-funcionários da empresa e até do prefeito de Greeley dão conta de condições que só puderam ser oferecidas a imigrantes em situação limite porque nenhum americano se dispõe a aceitá-las.

Valendo-se de uma autorização das autoridades de imigração dos EUA para exercer trabalho temporário no país, recrutadores informais atraíram - e extorquiram - imigrantes haitianos de várias partes do país para a JBS. Foram alojados em hospedarias onde dormiam em cobertores sobre o piso, usavam a banheira para preparar comida e cozinhavam em fogareiros colocados no chão.

Nada disso é muito diferente do que acontece nos flagrantes de trabalho análogo à escravidão no Brasil, mas tudo aconteceu nos Estados Unidos, onde, segundo um funcionário resumiu, até as prisões oferecem melhores condições.

A empresa conduziu investigações internas e, em agosto, depois de oito meses da primeira denúncia do sindicato, afastou os profissionais de recursos humanos envolvidos na operação-Haiti. Em nota, informou que colabora com as investigações e tem acordo com o sindicato internacional dos trabalhadores na indústria de alimentos para aperfeiçoar as políticas de contratação.

O “site” do WSJ já estampava a notícia desde cedo quando Lula subiu ao púlpito nas Nações Unidas às 10h48 da terça-feira. Deixou a Venezuela de fora, mas defendeu a retirada de Cuba da lista de países “terroristas” e fez um apelo pelo Haiti: “É inadiável conjugar ações para restaurar a ordem pública e promover o desenvolvimento”. No dia seguinte, enquanto os jornais brasileiros estampavam o discurso do presidente, o que havia mais próximo do Brasil na edição impressa do jornal era a generosa chamada de primeira página da reportagem: “Cortando carne e dormindo no chão”.

O entorno do presidente desconhecia o que estava por vir, mas dirigentes da empresa já tinham conhecimento da apuração em curso havia algumas semanas. Pressentiam sua publicação durante a “semana do clima”, evento da ONU com banqueiros e investidores concomitante à Assembleia Geral. A listagem da JBS na Bolsa de Nova York enfrenta a resistência de senadores - republicanos movidos por concorrentes americanos da empresa brasileira e democratas pressionados por ambientalistas.

A JBS tem feito progressos no tema desde o estabelecimento do Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal, de 2009, que visa a combater a compra de carne proveniente de pecuária em área desmatada. Hoje tem 93,8% de conformidade, ainda que levantamentos do Radar Verde, patrocinado por tradicionais organizações ambientais, como o Imazon, apontem que, a despeito de ter um controle eficaz de seus fornecedores diretos de carne, a JBS não consegue impor a mesma transparência aos indiretos.

Para a imagem do Brasil, a notícia se soma às dificuldades crescentes de o país se firmar como uma liderança ambiental e social. Em seu discurso, Lula reafirmou a promessa de desmatamento zero e o compromisso com uma meta climática ambiciosa a ser apresentada até fevereiro às Nações Unidas.

Na véspera, porém, cinco horas antes da reunião com o primeiro-ministro haitiano, Lula recebeu o CEO Global da Shell, Wael Sawan. A empresa é pule de dez nas parcerias que a Petrobras pretende fazer na Margem Equatorial. A determinação do governo em seguir com esta exploração demonstra o frágil equilíbrio da equação em jogo. As demandas fiscais do país não permitiriam que se abra mão das futuras receitas do petróleo. Se Lula fincou estaca na Margem Equatorial e pretende assumir todos os compromissos climáticos é porque o preço será cobrado do agronegócio.

A exposição negativa da maior estrela internacional do agronegócio brasileiro, pioneira na busca de certificação ambiental, é uma dificuldade adicional aos entraves políticos da agenda. Por sorte, o presidente deixou de fora de seu discurso a parceria estabelecida entre seu governo e o de Joe Biden, há exatos 12 meses, na mesma ONU. Naquela ocasião, foi firmada parceria para a promoção do trabalho digno.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

Texto excelente, muito informativo. Trata de assuntos pouco ou não abordados pela mídia tradicional. A JBS é protegida por Lula e amplos setores do mercado e da mídia, mas a verdade não é tão rosada ou dourada quanto querem nos mostrar. A colunista expõe os podres já recentemente denunciados nos EUA!

Anônimo disse...

E a JBS ainda é um dos ápices do agronegócio brasileiro!