Folha de S. Paulo
Exclusão e coerção sobre eleitores e suas
transformações
As eleições municipais
sofreram grandes transformações em um século. Com a mudança de regime em 1891,
o chefe do Executivo local passou a ser nomeado pelos governadores.
Inicialmente, 12 dos então 20 estados adotaram a regra, só pacificada pela
reforma de 1926. Com a Constituição de
1946, novas contestações, mas, nas capitais, estâncias, e bases militares, os
prefeitos continuaram a ser nomeados. A primeira eleição para prefeito em São
Paulo, a maior metrópole brasileira, teve lugar em 1953, e em Recife —a então
terceira maior— em 1955. Em 1965, o regime militar reeditou a vedação que
permaneceu até 1985, quando 201 municípios passaram a eleger prefeitos.
Prefeitos nomeados e Câmara de vereadores eleitos são o traço paradoxal das
cidades brasileiras no século 20. Os conselhos municipais com forte autonomia
vinham do período colonial. Os nomeados não sabiam sequer o nome da avenida
principal das cidades, como debochou Lima Barreto, perplexo com "o interesse estranho que essa
gente punha nas lutas políticas, nessas tricas eleitorais, como se nelas
houvesse qualquer coisa de vital e importante".
Na voz de Policarpo Quaresma, "não atinava porque uma rezinga entre
dois figurões [um governador e um senador] vinha por desarmonia entre tanta
gente, cuja vida estava tão fora da esfera daqueles". Mas logo revelava o
que estava em jogo: "Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos,
trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá político influente que não
se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos,
gordas pensões pagas pelo Tesouro da República".
A disputa pelo voto local era e continua sendo crucial para a política estadual
e nacional, e nele o controle sobre o alistamento era a chave do processo. A
partir da criação da Justiça Eleitoral em 1932, o alistamento tornou-se
obrigatório, mas não o voto. Paradoxalmente, a medida reforçou a manipulação do
eleitorado analfabeto majoritariamente rural até a década de 1970, e que não
votava até o fim da proibição formal, em 1985.
O contraste aqui com as barreiras criadas para a população negra nos EUA como
requisitos de testes de alfabetização, taxas de votação etc é marcante: nossas
oligarquias nunca se opuseram à inclusão da massa da população no sistema
eleitoral porque controlavam o alistamento. Como mostrei aqui, isto só mudou em 1955, com a introdução da cédula
oficial substituindo a fornecida pelos partidos, e que exigia que os eleitores
escrevessem o nome dos candidatos, o que acabava invalidando um terço dos
votos. Apenas em 2000, com o voto eletrônico, os votos inválidos despencaram.
Lima Barreto apontou a relação entre crime e eleições na
capital de Bruzundanga, mas não podia prenunciar que o crime organizado viria,
um século depois, a ser séria ameaça nacional, através da coerção e violência
sobre eleitores.
"O doutor-candidato vai neles com os mais cruéis assassinos da cidade,
quando ele mesmo não é um assassino... A fisionomia aterrada e curiosa da
cidade dá a entrever que se está à espera de uma verdadeira batalha; e a
julgar-se pelas fisionomias que se amontoam nas secções, nos carros, nos cafés,
e botequins, parece que as prisões foram abertas e todos os seus hóspedes
soltos."
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