DEU NO VALOR ECONÔMICO
Edificado sobre os escombros da sociedade destruída pela Grande Depressão e pelos dois conflitos mundiais, o Estado do Bem-Estar figura entre os principais suspeitos acusados de deflagrar a crise fiscal em que se enfiaram os europeus.
Ainda assim, poucos contestam o caráter singular do período de expansão capitalista do pós-guerra, até meados dos anos 70. Os estudos do economista Angus Maddison ("The World Economy, a Millennial Perspective") demonstram que nenhuma outra etapa do desenvolvimento capitalista apresentou resultados tão favoráveis no que diz respeito às taxas de crescimento do produto, salários reais, comportamento da inflação e estabilidade das taxas de juros e de câmbio.
Hoje são majoritárias as opiniões que deploram o peso excessivo do Estado munificente e investem contra as tentativas de disciplinar as forças simultaneamente criadoras e destrutivas do capitalismo. As mudanças tecnológicas, nas formas de concorrência, na organização e na estratégia da grande empresa e, por fim, na operação dos mercados financeiros, ocorridas a partir dos anos 70 do século passado, abriram caminho para grandes transformações.
O processo de mundialização da concorrência desencadeou uma nova onda de centralização de capitais e estimulou a dispersão espacial das funções produtivas e a terceirização das funções acessórias ao processo produtivo. Esse movimento foi acompanhado por uma intensa "apropriação" das decisões e da circulação de informações pelo "cérebro" da finança. Os mercados de capitais tornaram-se, ao mesmo tempo, mais poderosos na formação das decisões e, contrariamente ao que se esperava, menos "eficientes" na definição dos critérios de avaliação do risco.
Essa centralização das decisões associou-se, como já foi dito, à busca incessante de novas áreas "competitivas". Essa aliança impôs à economia global uma dramática ampliação da relação produtividade-salário nos países emergentes e, ao mesmo tempo, favoreceu a má avaliação do risco nos mercados que transacionam direitos de propriedade e títulos de crédito.
Quanto ao Estado Nacional, ninguém duvida de que sua ação econômica foi severamente restringida: assistiu impotente ao desdobramento das estratégias de localização e de divisão interna do trabalho da grande empresa e ficou à mercê das tensões geradas nos mercados financeiros, que submetem a seus caprichos as políticas monetária, fiscal e cambial. Mais do que por seu caráter global, a nova finança e sua lógica tornaram-se decisivos por sua capacidade de impor vetos às políticas macroeconômicas. O desemprego de longo prazo se ampliou nos países centrais, sobretudo na Europa. Nos Estados Unidos proliferou a precarização do emprego, fonte da queda de rendimentos dos 40% mais pobres e, portanto, do aumento da desigualdade.
A estas forças negativas o Estado e a sociedade não podem responder com ações compensatórias de outros tempos porque nos mercados globalizados cresce a resistência à utilização de transferências fiscais e previdenciárias, aumentando ao mesmo tempo as restrições à capacidade impositiva e de endividamento do setor público. Isto porque a globalização, ao tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos integrados, desarticulou a velha base tributária das políticas keynesianas erigida sobre a prevalência dos impostos diretos sobre a renda e a riqueza.
A ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, vem sendo contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado por meio do mercado capitalista. A ética da solidariedade é substituída pela ética da eficiência e, desta forma, os programas de redistribuição de renda, reparação de desequilíbrios regionais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado forte resistência dentro das sociedades.
Não há dúvida de que este novo individualismo tem sua base social originária na grande classe média produzida pela longa prosperidade e pelos processos mais igualitários que predominaram na era keynesiana. Hoje o novo individualismo encontra reforço e sustentação no aparecimento de milhões de empresários terceirizados e autonomizados, criaturas das mudanças nos métodos de trabalho e na organização da grande empresa.
A ação do Estado é vista como contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos desmobilizados e desprotegidos. Estas duas percepções convergem na direção da "deslegitimação" do poder administrativo e na desvalorização da política. Aparentemente estamos numa situação histórica em que a "grande transformação" ocorre no sentido contrário ao previsto por Polanyi (1980): a economia trata de se libertar dos grilhões da sociedade. As manifestações na Europa sugerem que a sociedade está preparando novas respostas às façanhas da economia do Mal-Estar.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
Edificado sobre os escombros da sociedade destruída pela Grande Depressão e pelos dois conflitos mundiais, o Estado do Bem-Estar figura entre os principais suspeitos acusados de deflagrar a crise fiscal em que se enfiaram os europeus.
Ainda assim, poucos contestam o caráter singular do período de expansão capitalista do pós-guerra, até meados dos anos 70. Os estudos do economista Angus Maddison ("The World Economy, a Millennial Perspective") demonstram que nenhuma outra etapa do desenvolvimento capitalista apresentou resultados tão favoráveis no que diz respeito às taxas de crescimento do produto, salários reais, comportamento da inflação e estabilidade das taxas de juros e de câmbio.
Hoje são majoritárias as opiniões que deploram o peso excessivo do Estado munificente e investem contra as tentativas de disciplinar as forças simultaneamente criadoras e destrutivas do capitalismo. As mudanças tecnológicas, nas formas de concorrência, na organização e na estratégia da grande empresa e, por fim, na operação dos mercados financeiros, ocorridas a partir dos anos 70 do século passado, abriram caminho para grandes transformações.
O processo de mundialização da concorrência desencadeou uma nova onda de centralização de capitais e estimulou a dispersão espacial das funções produtivas e a terceirização das funções acessórias ao processo produtivo. Esse movimento foi acompanhado por uma intensa "apropriação" das decisões e da circulação de informações pelo "cérebro" da finança. Os mercados de capitais tornaram-se, ao mesmo tempo, mais poderosos na formação das decisões e, contrariamente ao que se esperava, menos "eficientes" na definição dos critérios de avaliação do risco.
Essa centralização das decisões associou-se, como já foi dito, à busca incessante de novas áreas "competitivas". Essa aliança impôs à economia global uma dramática ampliação da relação produtividade-salário nos países emergentes e, ao mesmo tempo, favoreceu a má avaliação do risco nos mercados que transacionam direitos de propriedade e títulos de crédito.
Quanto ao Estado Nacional, ninguém duvida de que sua ação econômica foi severamente restringida: assistiu impotente ao desdobramento das estratégias de localização e de divisão interna do trabalho da grande empresa e ficou à mercê das tensões geradas nos mercados financeiros, que submetem a seus caprichos as políticas monetária, fiscal e cambial. Mais do que por seu caráter global, a nova finança e sua lógica tornaram-se decisivos por sua capacidade de impor vetos às políticas macroeconômicas. O desemprego de longo prazo se ampliou nos países centrais, sobretudo na Europa. Nos Estados Unidos proliferou a precarização do emprego, fonte da queda de rendimentos dos 40% mais pobres e, portanto, do aumento da desigualdade.
A estas forças negativas o Estado e a sociedade não podem responder com ações compensatórias de outros tempos porque nos mercados globalizados cresce a resistência à utilização de transferências fiscais e previdenciárias, aumentando ao mesmo tempo as restrições à capacidade impositiva e de endividamento do setor público. Isto porque a globalização, ao tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos integrados, desarticulou a velha base tributária das políticas keynesianas erigida sobre a prevalência dos impostos diretos sobre a renda e a riqueza.
A ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, vem sendo contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado por meio do mercado capitalista. A ética da solidariedade é substituída pela ética da eficiência e, desta forma, os programas de redistribuição de renda, reparação de desequilíbrios regionais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado forte resistência dentro das sociedades.
Não há dúvida de que este novo individualismo tem sua base social originária na grande classe média produzida pela longa prosperidade e pelos processos mais igualitários que predominaram na era keynesiana. Hoje o novo individualismo encontra reforço e sustentação no aparecimento de milhões de empresários terceirizados e autonomizados, criaturas das mudanças nos métodos de trabalho e na organização da grande empresa.
A ação do Estado é vista como contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos desmobilizados e desprotegidos. Estas duas percepções convergem na direção da "deslegitimação" do poder administrativo e na desvalorização da política. Aparentemente estamos numa situação histórica em que a "grande transformação" ocorre no sentido contrário ao previsto por Polanyi (1980): a economia trata de se libertar dos grilhões da sociedade. As manifestações na Europa sugerem que a sociedade está preparando novas respostas às façanhas da economia do Mal-Estar.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
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