quinta-feira, 21 de abril de 2011

Uma questão política:: Merval Pereira

O rebaixamento para "negativa" da perspectiva de classificação dos Estados Unidos pela agência de riscos Standard & Poors, embora mantendo a nota de AAA na dívida soberana da ainda maior economia do mundo, é "um chamado, não resta dúvida, mais para o lado político que econômico", na opinião do economista Paulo Vieira da Cunha, ex-diretor do Banco Central atualmente trabalhando no mercado financeiro em Nova York.

Segundo ele, desde antes da crise, estava claro que a trajetória do déficit americano era insustentável. A crise piorou o quadro, mas não o alterou fundamentalmente. O déficit é hoje maior, mas não a ponto de questionar seriamente a sustentabilidade da relação Dívida/PIB.

Vieira da Cunha está entre os que acreditam que o PIB potencial dos EUA caiu e que a economia não vai experimentar grandes crescimentos no futuro próximo. "O que se perdeu em PIB perdeu-se e não vai ser recuperado", afirma. Ele acha que o PIB nominal vai continuar se expandindo a 2,5/2,8% nos próximos anos, possivelmente desacelerando para 1,9/2,2% a partir de 2015-16.

"O impacto é tremendo, e o custo social da rede de proteção social aumenta proporcionalmente." Embora seja uma situação ruim, Vieira da Cunha considera que "não tem muito que ver com a perspectiva de rebaixamento".

O que conta para o ajuste fiscal, diz ele, é o custo futuro e já contratado dos compromissos sociais, que levaria o déficit em 2021 para 6,6% do PIB, com receitas de 18,5% e gastos de 25,1% do PIB, segundo o Escritório de Orçamento do Congresso.

E o cerne da questão é político, ressalta o economista brasileiro: reduzir benefícios, o que os democratas não querem; aumentar impostos, o que os republicanos não querem. "Ninguém se lembra de um ambiente político tão carregado e polarizado", diz Vieira da Cunha, situação que assusta o mercado financeiro.

Para ele, se nada for feito, será um desastre, mas também será um desastre, embora menor, se algo for feito apenas quando induzido pelo mercado, minimamente, para atender a problemas de curto prazo na rolagem da dívida. Na sua definição, a proposta de Obama "é um começo razoável". A contraproposta do líder republicano Paul Ryan, "um descalabro", como o pessoal do Macroeconomic Advisors escreveu, após esmiuçá-la.

A perspectiva mostra-se mais complicada ainda, diz Vieira da Cunha, pela quase certeza de que nas próximas décadas o dólar deixará de ser a moeda de reserva - mesmo havendo ajuste fiscal.

"O problema é que as alternativas ao dólar são igualmente ou mais incertas", analisa. A Europa, depois de tudo, será uma área com dívida europeia e não sub-regional. Em 20 anos pode ser uma alternativa muito mais competitiva; nos próximos cinco anos, dificilmente. Idem o Japão com a perspectiva lá de que nem em 20 anos a questão fiscal se resolveria. Sobram os emergentes, que ainda não inspiram confiança suficiente.

O historiador Niall Ferguson, no auge da crise financeira em 2008, previu que "os Estados Unidos poderiam perder a facilidade conveniente de ser capaz de pegar emprestado do exterior a juros baixos na sua própria moeda" e via se aproximando o fim da era em que o dólar era a única moeda de reserva internacional.

Ele lembrou a crise da libra inglesa, provocada por duas razões: "A principal razão foram as grandes dívidas que a Inglaterra fez para financiar suas guerras pelo mundo. E a segunda razão foi a desaceleração do crescimento da economia nas décadas do pós-guerra."

Mas o processo da transição da hegemonia da Inglaterra para os Estados Unidos levou décadas, e houve a concorrência entre a libra e o dólar como moedas de reserva por quase 60 anos.

Vieira da Cunha acha que, nesse particular, nada muda muito. "A compra de bônus do Tesouro pelos estrangeiros continua e, bem ou mal, continuará." A verdade, diz, é que, repetindo Ragu Rajan (economista assessor do governo indiano, professor em Chicago), há falta no mundo de "bens de qualidade com liquidez".

Ele admite que a China e outros países, como o Brasil, estão diversificando reservas e vão continuar a fazê-lo. A China é o segundo maior comprador de bônus do Tesouro americano, só perdendo para o Japão.

Mas lembra que, mesmo assim, "a China acumulou US$600 bi nos últimos nove meses", confirmando que "não há oferta de bonds que chegue".

Por outro lado, diz ele, há uma certeza no mercado de que em dez anos a China vai ter déficit, e provavelmente desacumulará reservas. "Entretanto, se em dez anos os EUA não apresentarem um programa coerente de ajuste fiscal, a nova crise global já terá acontecido e nivelado tudo por baixo."

Tudo indica que a maior virtude por ora do rebaixamento da S&P é chamar a atenção para a forma pouco articulada com a qual o sistema político está tratando do assunto em Washington.

Há quem ache que o investidor, provavelmente, tem menos para se preocupar com um potencial default do que com a possibilidade de os EUA passarem a considerar a inflação como o único caminho para diluir essa dívida.

A eleição de 2012, em vez de ajudar na solução, tem o potencial de se radicalizar em torno do tema e agravá-lo. É razoável admitir, também, que os credores externos usarão os fóruns existentes, tipo G-20 e FMI, para pressionar Washington a fim de evitar o pior.

Vieira da Cunha acha que, se a dinâmica da dívida vier a provocar inflação, isso acontecerá pelo resultado político: a total falência do sistema de governo e, portanto, o questionamento dos EUA como nação coerente e responsável. A consequência seria a perda de confiança no ativo e a incapacidade do governo americano de se financiar, mesmo pondo papéis atrelados à inflação.

Nesse sentido, a advertência da S&P ajuda a que o Congresso americano chegue a um acordo.

FONTE O GLOBO

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