Criadas com o objetivo de evitar fraudes e donas de um selo de qualidade emitido pelo Ministério da Justiça para receber recursos públicos, as Oscips (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) se transformaram em um negócio lucrativo. Na internet, anúncios oferecem: "Passo a presidência e diretoria de Oscip com 4 anos, devidamente registrada no Ministério da Justiça, sem pendência. R$ 25.000." No endereço desta Oscip, em Ceilândia, bairro pobre de Brasília funciona uma pizzaria. Muitas Oscips anunciadas na internet são organizações de fachada, que existem só para receber o dinheiro dos convênios com o governo federal. A fiscalização é falha. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), é de R$ 120 milhões o total de verba federal repassado a Oscips por intermédio de parcerias cujas prestações de contas estão pendentes: não foram apresentadas ou analisadas.
Quando o interesse público está à venda
ONGs com selo de qualidade do governo, Oscips são negociadas até na internet
Alessandra Duarte
Oanúncio no site é claro: "Passo a presidência e diretoria de Oscip com 4 anos, devidamente registrada no Ministério da Justiça, sem nenhuma pendência em qualquer órgão regulador. Já com o certificado 2011. R$25.000". A venda pela internet de Oscips - Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, entidades não governamentais sem fins lucrativos que recebem do Ministério da Justiça uma espécie de selo de qualidade, que lhes habilita a serem contratadas por governos e a prestarem serviços públicos - é o lado mais visível de uma série de irregularidades que envolvem essas entidades.
Criadas pela lei 9.790/1999 para distinguir, no universo das ONGs, as que têm chancela do Ministério da Justiça, as Oscips surgiram para melhorar a fiscalização do setor, mas, na última década, estão servindo a fraudes e desvios como ocorria antes com as ONGs. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), é de R$120 milhões o total de verba federal que não teve prestações de contas apresentadas ou ainda não analisadas de termos de parceria, instrumento de uso exclusivo das Oscips.
Ação contra "pirâmide"
A venda de Oscips foi alvo de operação da Controladoria Geral da União em dezembro de 2010, mas trocas de e-mails entre anunciantes das entidades e O GLOBO mostram que a prática continua. Levantamento em acórdãos do TCU deste ano e do ano passado mostra outro tipo de fraude: num processo seletivo, a Oscip concorre com outras entidades ligadas a ela - o que faz com que o resultado, seja ele qual for, beneficie a mesma entidade ou pessoa.
Empresas privadas também pagam uma "taxa de administração" a uma Oscip para que esta faça o contrato com o poder público, livrando-se, assim, da licitação - que seria necessária caso a empresa fosse contratada diretamente. Nesse caso, a Oscip subcontrata a empresa que paga a taxa, e é esta que recebe a verba pública para o serviço. Segundo a CGU, além da venda, que "desqualifica o caráter filantrópico" da Oscip, a grande fraude tem sido "a criação de entidades de fachada":
- Elas simulam cotações de preços entre empresas muitas vezes fictícias, ou realização de eventos ou fornecimento de produtos - diz Luiz Navarro, secretário-executivo da CGU.
- Como Oscip não pode ter lucro, uma fraude que vimos é a Oscip criar empresas só para fornecerem nota fiscal a ela e, assim, "comprovar" despesa que não existiu, e isso é seu lucro - diz o delegado da Polícia Federal Fabiano Bordignon, responsável pela Operação Déjà Vu 2, de abril deste ano, que descobriu desvio de R$18 milhões em fraudes entre prefeituras e Oscips em quatro estados e no DF.
Outra prática - alvo de processo no Tribunal de Justiça do Rio, após ação do Ministério Público - é a de uma Oscip atuar como agente de financiamento imobiliário, num esquema de pirâmide: associados pagam uma espécie de parcela e recebem "pontos" se conseguem novos associados.
O GLOBO entrou em contato com o e-mail do anúncio que cobra R$25 mil por uma Oscip. A resposta: "Documentos registrados em cartório, da mesma forma será transferida em cartório. Favor deixar contato, já tenho negócio iminente". Na resposta, assinada por "Márcio", o anunciante indica um link, que leva à Oscip Instituto Nacional de Fiscalização (INF). O símbolo da entidade - que no site diz atuar no combate à pirataria - lembra o distintivo da Polícia Federal.
Em outro anúncio, a oferta: "Passo a presidência de Oscip com 6 anos, com certificação, toda regularizada". O GLOBO fez contato por e-mail com o anunciante, que respondeu: "Totalmente limpa e desimpedida, faça sua proposta". Segundo ele, que usa o email "Sanpherr Construtora", a Oscip não presta serviços a órgãos públicos. Ainda de acordo com o anunciante, a razão da "desistência" da entidade é que "preciso de dinheiro". Ele enviou o que seriam "as finalidades" da Oscip: um compêndio que junta agricultura, intermediação financeira, desenvolvimento de software, ecoturismo, mídia, construção de penitenciárias e conjuntos habitacionais.
Num outro anúncio, a prova de que até contratos com governos já são negociados irregularmente: "Passo presidência de uma Oscip por R$300 mil. Temos créditos federais e estaduais de R$1 milhão". Ao ser procurado pelo GLOBO, o anunciante, "Edevaldo", alegou: "Não tenho mais esses créditos, já venceu o prazo de uso".
"Atenção políticos e empresários! Passo toda diretoria de ONG com mais de dez anos. Pode fazer alteração no estatuto (...) e solicitar mudança de ONG para Oscip", divulgou outro anunciando, vendendo facilidades para conseguir a chancela do Ministério da Justiça. Ao revelar o preço, uma mostra de como o mercado atua: "Só R$20.000 (esse valor, se você colocar sistema de carnês para colaboradores, você tira em 2, 3 meses)".
Acórdãos do TCU mostram ainda mais "criatividade" dessas entidades que surgiram para evitar, justamente, irregularidades que estavam sendo cometidas por ONGs. Um deles, de fevereiro, por exemplo, descobriu "pagamentos a pessoas físicas com identificação fictícia, em face da inexistência do nome e/ou CPF indicado", em convênio entre a Agência Nacional de Águas e o Instituto Pró Rio Doce, de Minas.
Outros três acórdãos, de fevereiro passado, revelam indícios de irregularidades em convênios e termos de parceria da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial com o Instituto Treinar, de Florianópolis. Um dos acórdãos vê "indícios de conluio entre as licitantes". Para o relator, ministro Ubiratan Aguiar, "saltam aos olhos indícios de má-fé na gestão de recursos públicos pelo Treinar, cujo diretor-geral aplicou recursos recebidos em contratações com empresas das quais eram sócios ele, seus familiares e pessoas ligadas à entidade".
No acórdão 1.205/2011, sobre "possíveis irregularidades nas transferências voluntárias a organizações não governamentais em Sergipe entre 2008 e 2010", o TCU determina que o Ministério do Trabalho suspenda o repasse de verba a várias entidades, entre elas a Oscip Agência de Tecnologia, Pesquisa e Ensino do Nordeste (ATNE). A Oscip não presta contas desde 2009 e, diz o TCU, tem representantes envolvidos com entidades "cuja existência física não pôde ser comprovada".
FONTE: O GLOBO
Nenhum comentário:
Postar um comentário